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Disjunções arminianas injustificadas

“Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem.” (Marcos 10.9)
Na tentativa de manter a coerência do sistema, o arminianismo é obrigado a criar algumas diferenciações artificiais em seus elementos e que carecem de fundamentação nas escrituras. Algumas são defendidas conscientemente, outras afloram quando um ponto em questão é pressionado. Em todo caso, mostram como o sistema padece de robustez, em consequência de negar doutrinas que lhe parecem desagradáveis. Vejamos três casos em que disjunções aparecem, embora vários outros pudessem ser elencados.

Introduzem discórdia de propósitos na Trindade

O primeiro e talvez o mais evidente deles tem a ver com os propósitos das pessoas da Trindade na obra da salvação. No arminianismo, o Pai decidiu salvar apenas os eleitos [1], ou seja, aquelas pessoas que Ele previu que iriam crer e perseverar [2]. Já o propósito do Filho é remir todas as pessoas sem exceção [3], daí Sua morte ter abrangência universal. Ora, se o propósito do Pai é salvar apenas os que creem e o propósito da morte do Filho é expiar o pecado de todas as pessoas indiscriminadamente, então a vontade do Filho está dissociada da vontade do Pai. Jesus morreu por pessoas a quem Deus não pretendia salvar e às quais o Espírito Santo não aplica os benefícios da morte do Filho.

Em toda a Escritura a salvação é obra da Trindade e as três pessoas estão em perfeita harmonia quanto ao escopo da salvação. Não vemos Deus elegendo alguns e não outros, ao passo que Jesus morre vicariamente no lugar de toda a humanidade e o Espírito converte apenas uma parte dos que Jesus remiu. Pelo contrário, na Bíblia aqueles que o Pai predestinou são exatamente os mesmos que o Filho resgatou e aos quais o Espírito chama e regenera.

Dividem a obra sacerdotal de Cristo

No seu primeiro discurso na universidade de Lyden, Armínio escolhe como tema a obra sacerdotal de Cristo. No seu discurso ele promove uma disjunção entre a tarefa sacrificial e a tarefa intercessória de Jesus, afirmando que Jesus morreu por todos, mas intercede apenas pelos crentes [4]. O motivo dessa mudança de escopo é que se Jesus intercedesse por todos e cada um daqueles por quem morreu, todo mundo seria inevitavelmente salvo, posto que nenhuma oração do Filho deixa de ser atendida pelo Pai [5]. Subjaz nesse motivo a diferença na eficácia da morte e da oração de Jesus, pois a primeira não é em si mesmo eficaz para salvar (carece de algo externo à morte de Jesus), enquanto que a oração tem eficácia absoluta.

O sistema sacrificial do Antigo Testamento indica claramente que o sacerdote intercedia pelas mesmas pessoas em favor de quem foi oferecido o sacrifício. E o Novo Testamento reforça que Jesus intercede por quem Ele morreu, e vice-versa. Separar Sua morte sacrifical de Sua oração sacerdotal não é bíblico e implica que o Pai rejeitaria àqueles por quem Jesus ofereceu Sua vida, mas não as rejeitaria se tão somente Jesus oferecesse uma oração em favor delas. A ruptura arminiana da obra de Cristo faz com que Sua oração seja mais aceitável diante de Deus que Seu sofrimento.

Distinguem salvos e eleitos

Uma terceira distinção artificial que o arminiano é levado a fazer é criar duas classes de salvos. Ele é forçado a isso para poder sustentar que um salvo pode vir a perder a salvação sem com isso comprometer a infalibilidade da presciência divina. Se Deus anteviu a fé de alguns e os elegeu baseado nela, não pode estar errado quanto a eles serem salvos e, portanto, todos os eleitos seriam infalivelmente salvos. Isto implicaria que a doutrina da segurança eterna é verdadeira, o que a maioria dos arminianos não está disposta a admitir. A saída encontrada é dizer que nem todo salvo é eleito, criando duas classes de crentes, uma de meros salvos e outra de salvos eleitos, sendo que aqueles, por fim, serão condenados [6]. Por implicação, a eleição de ninguém pode ser confirmada nesta vida, exceto na mente de Deus.

É quase desnecessário dizer que a Escritura desconhece completamente essa distinção. Em toda a Bíblia os eleitos serão levados à fé e serão salvos e os salvos são aqueles que foram eleitos. Existe completa identidade entre salvos e eleitos, a distinção é extrabíblica e artificial. Não existe nenhuma insinuação escriturística de que um crente possa ser um salvo não eleito. Pelo contrário, quando ela afirma a eleição de alguém, afirma sua salvação, e vice-versa. E a eleição pessoal não apenas pode ser confirmada em vida, como os crentes são instados a confirmarem-na pessoalmente.

Conclusão

Convém considerarmos, em conclusão, a necessidade dessas disjunções artificiais. Dissemos que o arminianismo é obrigado a essas divisões como artifício para fugir de declarações bíblicas e suas implicações lógicas. Para não ser acusado de universalismo ao rejeitar a redenção definida, é forçado a manter que as vontades do Pai e do Filho diferem entre si quanto aos objetos da eleição e da expiação. Frente à afirmação bíblica de que o Pai sempre ouve o Filho, que morre em favor de todos, é levado a afirmar que Jesus não intercede por todos aqueles por quem morre. E para poder continuar sustentando que alguém comprado pelo sangue de Jesus, regenerado pelo Espírito Santo e guardado pelo poder do Pai, ainda assim pode vir a perder a salvação, tem que introduzir a estranha afirmação de que todo eleito é salvo, mas nem todo salvo é eleito.

Tão mais simples e bíblico seria afirmar que Jesus morreu com o propósito de salvar infalivelmente a todos que o Pai elegeu e ninguém mais, os quais serão levados à fé pela obra do Espírito, os quais serão guardados até o fim pela Trindade Santa.

Notas

[1] “Deus decretou salvar e condenar certas pessoas em particular” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 227)

[2] “Este decreto tem o seu embasamento na presciência de Deus, pela qual Ele sabe, desde toda a eternidade, que tais indivíduos, por meio de sua graça preventiva, creriam, e por sua graça subsequente perseverariam, de acordo com a administração previamente descrita dos meios que são adequados e apropriados para a conversão e a fé” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 227).

[3] “O preço da morte de Cristo foi pago por todos e por cada um” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 288)

[4] “Mas Cristo é descrito como intercedendo pelos fiéis, e excluindo o mundo, porque, depois que havia oferecido um sacrifício suficiente para remover os pecados de toda a humanidade, foi consagrado como ‘um grande sacerdote sobre a casa de Deus’ (Hb 10.21)” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 43).

[5] "Dessa circunstância, podemos concluir, com a maior certeza, que as orações dEle nunca serão rejeitadas" (Armínio, Obras, vol. 1, p. 43).

[6] “Os cristãos fiéis e os eleitos não são corretamente interpretados como sendo as mesmas pessoas.” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 350). Convém considerar, porém, que mais tarde, Armínio parece defender que “a fé é peculiar ao eleito” (idem, p.255), embora arminianos modernos mantenham a distinção.

A santificação da igreja

A santificação é uma característica fundamental da igreja, “sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12.14). Contudo, nem sempre é bem compreendida e muitas vezes negligenciada. Muitas vezes é reduzida ao aspecto exterior, como se pudesse ser forçada de fora para dentro, através de regras que proíbem certos alimentos e prescrevem em detalhes o modo de se vestir. Mas isso produz mais sepulcros caiados que santos.

Outra confusão comum é não distinguir os conceitos de justificação e santificação. A igreja romana é culpada disso e essa confusão estava no centro da controvérsia nos dias da Reforma. A justificação é um ato exclusivo de Deus pelo qual Ele declara que aquele que crê em Cristo é justo diante dele. A justificação é objetiva. A santificação, por sua vez, é uma obra que Deus realiza no crente, transformando-o contínua e progressivamente à imagem de Jesus Cristo. A santificação é, pois, subjetiva. A justificação marca o início do processo de santificação, o qual somente será concluída ao final da jornada cristã na terra.

Biblicamente, santificação significa separação e consagração de pessoas ou coisas para um propósito definido. No caso do povo de Deus, santificação é a separação do mundo para consagração ao serviço de Deus. “Ser-me-eis santos, porque eu, o SENHOR, sou santo e separei-vos dos povos, para serdes meus” (Levítico 20.26). Porque Deus é santo, isto é, infinitamente separado e exaltado de Sua criação, o caráter divino requer santidade daqueles que pertencem a Ele. “Pelo contrário, segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento, porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo” (1Pedro 1.15–16)

Dissemos que a justificação é um ato exclusivo de Deus, para diferenciá-la da santificação, que embora seja uma obra divina, é realizada em cooperação com o homem. “Portanto, santificai-vos e sede santos, pois eu sou o SENHOR, vosso Deus. Guardai os meus estatutos e cumpri-os. Eu sou o SENHOR, que vos santifico” (Levítico 20.7–8). Deus assegura a santificação final, mas o crente é responsável por buscar a santidade, “advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim” (Colossenses 1.28–29).

A citação bíblica em epígrafe afirma que Cristo santifica e purifica a sua igreja, “para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Efésios 5.27), enfatizando o aspecto divino da santificação. “Sendo este mesmo o salvador do corpo” (Efésios 5:23), Ele santifica a igreja livrando-a do pecado. Na justificação, salva da culpa do pecado, na santificação, do domínio do pecado e na glorificação final, da presença do pecado. Dentre os meios que o Senhor usa para santificar a igreja, está a Palavra de Deus, “tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra” (Efésios 5.26). Em Sua oração sacerdotal pela igreja Ele pedia ao Pai: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (João 17.17).

Mas do lado humano da santificação também há o que ser feito para que haja crescimento em santidade. Começa com uma aceitação do senhorio de Jesus Cristo, “a igreja está sujeita a Cristo” (Efésios 5:24). Isso leva, por consequência, à obediência dos mandamentos: “Guardai os meus estatutos e cumpri-os. Eu sou o SENHOR, que vos santifico” (Levítico 20.8). E quando falhar na observância dos mandamentos divinos, confessar e pedir perdão a Deus, pois “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1João 1.9).

Na santificação, vemos expressas tanto a soberania de Deus como a responsabilidade do homem. Deus é soberano para santificar e é Ele quem, finalmente, produz santidade no crente. Porém este é responsável diante Dele pela obediência ao comando “Sede santos, porque eu sou santo” (1Pedro 1.16). Sendo Deus três vezes santo, justificada está a declaração inicial de que sem santidade, ninguém verá o Senhor.

Soli Deo Gloria

Os deveres missionários do cristão


Você já teve ter ouvido a expressão “todo crente é um missionário ou um impostor”. Não é apenas uma frase de efeito, é uma verdade a ser considerada com seriedade. Também é possível que você tenha ouvido dizer “tudo o que a igreja faz é missões”. Essa frase, porém, é enganosa e serve de pretexto para que a igreja faça muita coisa que não tem nada a ver e que não contribui com nada ou muito pouco com a obra missionária. “Se tudo é missões, nada é missão”, já foi dito em resposta a essa afirmação. O texto que hoje iremos considerar reafirma a primeira afirmação e serve de base para questionarmos a segunda. Eis o texto:
“Depois disto, o Senhor designou outros setenta; e os enviou de dois em dois, para que o precedessem em cada cidade e lugar aonde ele estava para ir. E lhes fez a seguinte advertência: A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara. Ide! Eis que eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos. Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias; e a ninguém saudeis pelo caminho.” (Lucas 10.1–4)

Jesus faz uma advertência

O “depois disto” aponta para o início do capítulo 9 onde Jesus dá instrução aos doze apóstolos e os envia “a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos (Lucas 9.2). Além dos doze, “o Senhor designou outros setenta”. No capítulo final ele ordena a todos “que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém” (Lucas 24.47). A partir do doze, Jesus amplia o número dos que devem anunciar o evangelho, para incluir todos “aqueles que creem” (Mc 16:15-18). Mas a expressão “depois disto” também pode ser referir aos versículos 57-62 do capítulo precedente, onde Jesus testa os que querem lhe seguir, terminando com a advertência “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lucas 9.62).

A advertência feita aos setenta é que “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”. Passados vinte séculos e tendo o evangelho avançado muito além da Palestina nesse período, a advertência continua válida para a igreja de hoje. A tarefa continua gigantesca. Há muitos povos ainda não alcançados e línguas para as quais a Escritura ainda não foi traduzida. Há muitos lugares no mundo onde Cristo ainda não foi anunciado, onde o povo em trevas sem saber aguarda o cumprimento da promessa “hão de vê-lo aqueles que não tiveram notícia dele, e compreendê-lo os que nada tinham ouvido a seu respeito” (Romanos 15.21). Apesar do tamanho da tarefa, “os trabalhadores são poucos”. A igreja tem sido omissa em prover ao mundo obreiros para completar a tarefa de proclamar a Cristo em todo o mundo. Os crentes investem muito pouco de seus recursos na obra missionária e poucos se dispõe a ir aonde o evangelho ainda não chegou.

O que podemos fazer

Está claro que estamos sob o dever de anunciar a salvação ao mundo e não precisamos nos estender em demonstrar essa obrigação. Mas o que podemos fazer efetivamente? Jesus nos apresenta a mais necessária das tarefas, a oração. “Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara”. Aí está algo que todo crente pode fazer. Uma irmã que tinha muito desejo de se dedicar a obra de Deus sofreu um acidente, ficando paralítica. Ao lamentar-se com seu pastor de que não mais poderia trabalhar na seara do Senhor, ouviu dele que poderia orar pelos missionários. Assim ela passou a orar todas as manhãs pela obra missionária num dos hemisfério, e à tarde, pelo outro hemisfério do mundo. Você pode estar orando pela obra missionária. Mas pode orar mais, e orar mais intensamente. E deve orar especificamente para que Deus levante novos missionários, apresentando-se em oração como alguém que Ele pode enviar, se assim o quiser. Que “eis-me aqui, envia-me a mim” (Isaías 6.8) também seja sua oração.

Se essa for sua oração, talvez você ouça de Jesus “Ide! Eis que eu vos envio”. Há muitas formas do evangelho chegar em terras longínquas. O rádio e a televisão têm se mostrado efetivos para veicular a mensagem do evangelho em lugares de difícil acesso. Mais recentemente, a Internet tem alcançado pontos impensáveis e tem sido uma ferramenta útil. Porém, nada substitui a presença física do missionário. A proclamação do evangelho é a principal atividade do esforço, mas não é tudo. Atender necessidades locais, plantar igrejas, formar líderes nativos, tudo isso requer o envolvimento pessoal do missionário. Portanto, o ide não é um imperativo supérfluo hoje, mas uma necessidade real. E o fato dos missionários serem enviados “como cordeiros para o meio de lobos” não deve arrefecer a disposição de ir.

A terceira tarefa, na qual toda a igreja deve se envolver é o sustento missionário. Jesus não afirma isso categoricamente no texto, mas fica explícito quando Ele diz “Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias” (Lucas 10.4). Um missionário não deveria ter que se preocupar com seu sustento, a igreja deve encarregar-se disso. Como missionário, Paulo não buscava ofertas e donativos, mas a igreja de Filipos tomava a iniciativa de enviar-lhe o necessário, e até mais que isso. “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Filipenses 4.18). A igreja da Galácia, por sua vez, recebe o testemunho de seu missionário “de que, se possível fora, teríeis arrancado os próprios olhos para mos dar” (Gálatas 4.15). Infelizmente, há igreja que gasta mais com copos plásticos no bebedouro que com missionários no campo e outras que faz um grande esforço para instalar ar condicionado no templo enquanto missionários sofrem carências básicas.

Eu quero acreditar que você ora por mais missionários e em favor deles e que tem contribuído generosamente para o sustento deles. De fato, sou movido a dar graças a Deus pela sua dedicação nessa causa. Porém, será que não podemos fazer um pouco mais? Andar a segunda milha? Dedicar mais um pouco do seu tempo de oração para os missionários espalhados pelo mundo? Abrir mão de algo supérfluo ou que poderia ser adiado e enviar uma oferta especial para um missionário que esteja necessitando? A secretaria de missões pode te orientar sobre isso.

O que podemos esperar

Voltando ao primeiro versículo, lemos que “o Senhor designou outros setenta; e os enviou”. No verso seguinte descobrimos que o Pai é “Senhor da seara”. Logo, os enviados são arautos de Jesus, que levantam seu estandarte e em Seu nome estendem os limites do Seu reino aqui na terra. E os que o apoiam com oração e sustento estão envolvidos na causa do Senhor. Não há maior honra que proclamar o nome do Senhor onde Ele ainda não foi invocado e nenhuma outra causa na terra é tão nobre quanto o Seu reino. O Senhor está realizando Sua missão no mundo e para todo crente é um privilégio único fazer parte de Seu projeto para as nações. Missões não é uma parte importante da nossa vida cristã, nossa vida inteira deve fazer parte da missão de Deus.

Além disso, temos uma promessa que deve nos animar em nosso esforço pela causa de Cristo no mundo. Jesus “os enviou de dois em dois, para que o precedessem em cada cidade e lugar aonde ele estava para ir”. Os missionários são arautos, que tocam trombetas para preparar a chegada do grande Rei. Onde o missionário proclama o evangelho, Jesus se faz presente. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações...e eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mateus 28.19–20). O êxito do empreendimento missionário não depende de nossa oração, de nosso serviço e nem de nossas ofertas, embora Deus use tudo isso como meio. A garantia que temos é que o próprio Senhor se apresentará e fará frutificar o trabalho missionário. Disso advém a certeza de que “quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes” (Salmo 126.6).

Soli Deo Gloria

A Cadeia Inquebrável da Salvação

Salvação e cinco pontos remetem ao acróstico TULIP, conhecidos como os cinco pontos do calvinismo: total depravação, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Mas neste artigo gostaria de enfatizar outros cinco pontos, relacionados com a ordem de salvação, os quais são geralmente referidos como elos da cadeia inquebrável da salvação divina, que começando na eternidade passada, mergulha na história e continua na eternidade futura.

O texto que nos guiará é Romanos 8:29-30, citado na epígrafe. É importante, desde já, chamar atenção para alguns detalhes importantes sobre esse texto. O primeiro deles, é que os objetos das ações divinas nele mencionados são pessoas e não algo nelas ou delas. As reiteradas referências “aos que” prova tratar-se de pessoas e não de coisas, caso em que o apóstolo usaria “os que” para referir-se aos objetos. O segundo é que se trata de um grupo definido e fixo de pessoas. Novamente, a referência “aos que... também os” implica isso. Os mesmos “aos que” referidos na eternidade passada são os mesmos “aos que” referidos na história e são os mesmos “aos que” que entram na glória. Ninguém é excluído, nenhum é adicionado. Estes dois fatos devem ser levados em conta ao considerarmos os que se segue.

A expressão “de antemão conheceu” é tradução de uma única palavra: proegno. O prefixo pro- indica um conhecimento prévio e eterno e é traduzido por “de antemão” na expressão. Ele denota algo ocorrido na eternidade passada e não na história corrente. Por sua vez, egno é o modo indicativo ativo do verbo ginosko, em seu aspecto aoristo, que significa “conheceu”. Aplicado ao conhecimento divino, não é mera presciência ou previsão. Deus é onisciente, conhecendo num ato simples tudo o que há para ser conhecido, real ou possível. E sendo presciente, conhece todos os fatos desde sempre. Mas proginosko tem um significado mais profundo que o conhecimento exaustivo e infalível de todas as pessoas, coisas e eventos.

De fato, ginosko traz em si a ideia de conhecimento relacional ao invés de mera constatação antecipada de fatos. Quando Deus diz “povo que não conheci me serviu” (2Sm 22.44; Sl 18:43) e Cristo sentencia aos ímpios “nunca vos conheci” (Mt 7.23) não estão falando que não sabiam que eles existiam, mas declarando que não havia um conhecimento relacional. De igual modo, quando o Senhor declara “Eu te conheci no deserto” (Os 13.5), Jesus informa “conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim” (Jo 10.14) e Paulo assegura “o Senhor conhece os que lhe pertencem” (2Tm 2.19) a ideia envolvida não é de mero conhecimento, mas de relacionamento íntimo. Aliás, os judeus usavam a palavra conhecer para se referir à relação sexual entre um homem e uma mulher: “contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mt 1.25).

Assim sendo, ser conhecido de antemão significa ser escolhido como objeto do amor redentivo de Deus desde a eternidade. O verbo conhecer tem o sentido bíblico de conhecer intimamente com amor (Jr 1:5; Os 13:5; Am 3:2; 1Co 8:3; Gl 4:9) e expressa a peculiar complacência de Deus para com os Seus. É importante salientar que o texto não informa nada como condição para esse pré-conhecimento eletivo, sejam fé, amor, obras ou obediência. É uma decisão livre e soberana, como indica seu uso em 1Pe 1:20, com referência a Jesus.

Muitos negam que esse pré-conhecimento tenha caráter eletivo, pois ele seria determinativo e eles insistem que a presciência é meramente constatativa. Entendem que “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2) significa tão somente que Deus previu a fé deles e os elegeu por constatar que eles creriam Nele. Mas tanto aqui como em Paulo, não vemos a fé mencionada como objeto da presciência divina. Aliás, em lugar algum nas Escrituras fé, amor ou outra coisa qualquer é indicada como condição para a eleição. Os eleitos são conhecidos por Deus desde antes da fundação do mundo, para serem objetos do Seu amor e depositários da Sua graça salvadora, sem consideração de algo neles previsto que os diferenciasse dos demais.

Ao conhecimento eletivo de Deus segue-se logicamente a predestinação. Muitas vezes essa ordem é invertida e a predestinação é vista como tratando-se de eleição e reprovação, daí a expressão dupla predestinação, bastante comum. Porém, a ordem bíblica é eleição, seguida da predestinação dos eleitos. Biblicamente falando, a predestinação diz respeito unicamente aos eleitos, não havendo sentido bíblico falar em predestinação para a perdição. “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou”.

O termo bíblico predestinou é tradução do verbo proorize, indicativo ativo de proorizo. O prefixo pro- tem o mesmo sentido apontado no seu uso em proegno, ou seja, indica uma ação realizada na eternidade. Portanto, não se pode distinguir uma ordem cronológica entre o conhecimento divino de Seus eleitos e a predestinação deles, embora uma ordem lógica tenha que ser admitida, com a eleição precedendo a predestinação, como mencionado. O verbo horizo carrega o sentido de destinar, determinar, ordenar, designar, estabelecer limites. Portanto, proorize significa predeterminar, decidir de antemão, destinar desde a eternidade.

A questão de quem são os predestinados é bastante clara e não admite controvérsia: são os que foram conhecidos de antemão. O ponto é a que eles foram predestinados, e o complemento esclarece que é “para serem conformes à imagem de seu Filho”. Em outro texto, o destino decidido por Deus para seus eleitos é “a adoção de filhos” (Ef 1:5). Isto de forma alguma nega que a predestinação tenha em vista a salvação, pois esta engloba tudo o que é dito nesta passagem, do conhecimento prévio à glorificação final. Podemos dizer, então, que a predestinação é a preordenação divina de todas as coisas visando conduzir seus eleitos à fé, à adoção de filhos e à progressiva conformação à imagem de Seu filho, a ser completada na glorificação final.

Se mais precisa ser dito sobre a predestinação, é destacar sua força, que vem do fato de que quem predestina é Deus, o Todo-Poderoso! Somos “predestinados segundo o propósito Daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1:11). Sugerir que um predestinado pode vir a apostatar e finalmente se perder é insultar o conhecimento, a sabedoria e o poder do Senhor. É quebrar a cadeia inquebrável. Deus decidiu o destino glorioso dos crentes, nada, nem mesmo os próprios crentes podem alterar esse decreto divino.

Conforme vimos até aqui, os termos pré-conhecidos e predestinados indicam atos realizados na eternidade passada. Mas agora a cadeia de ouro desce para o tempo para indicar a realização do propósito divino, ou seja, a etapa em que os eleitos “são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Assim, “aos que predestinou, a esses também chamou”. E como foi com os termos anteriormente tratados, aqui também requer-se uma compreensão do que seja essa chamada.

Chamar é utilizado tanto para se referir a um convite geral, externo e não eficaz, como a uma chamada pessoal, interna e eficaz. O desconhecimento desses dois aspectos do chamado leva muitos a confundirem-se quanto à sua eficácia. Quando Jesus disse que “muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” (Mt 22.14) estabeleceu uma diferença no número dos que são chamados e dos que são eleitos, sendo aqueles em maior quantidade que estes. Claramente Ele não estava se referindo ao chamado interior, feito pelo Espírito Santo. Porém no texto que estamos considerando, todos os que foram predestinados na eternidade são eficazmente chamados no devido tempo. Aqui, o número de chamados coincide exatamente com o número dos eleitos. Isso porque, em Paulo, ekalese, forma verbal derivada de kaleo, chamar, é sempre eficaz quando feita por Deus (Rm 4:17; 9:7,11,24; 1Co 1:9; 7:17-24; Gl 1:6,15; 5:8,13; Ef 4:1,4; Cl 3:15; 1Ts 2:12; 4:7; 5:24; 2Ts 2:14; 1Tm 6:12; 2Tm 1:9).

Da confusão entre o chamamento exterior pelo evangelho e a chamada interior pelo Espírito Santo resulta a má compreensão e a consequente oposição à doutrina da graça irresistível. Sim, os homens sempre podem resistir, e de fato resistem, ao convite geral do evangelho, o qual é acompanhado de promessa, “muitos são chamados”. Mas nos eleitos desde a eternidade, a graça vence essa resistência, pela operação milagrosa do Espírito no coração deles, “mas poucos, escolhidos”. Se alguém crê, é porque foi predestinado a isso, “creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48).

Dada a natureza caída do homem, em que todas as suas faculdades estão afetadas pelo pecado e o leva a se opor a Deus e a tudo o que Ele oferece, o crente deve ser imensamente grato a Deus por agir nele, tirando seu coração de pedra e dando-lhe um coração de carne, capaz de amá-lo e desejá-lo. E a certeza de que todos os que foram de antemão conhecidos e predestinados na eternidade serão irresistivelmente chamados em tempo oportuno, é um estímulo à evangelização, pois Deus chama seus eleitos à fé mediante a pregação do evangelho.

É maravilhoso considerar o que Deus fez até aqui. Elegeu, predestinou e atraiu para Si pecadores perdidos. Mas como pecadores, transgressores da santa Lei podem se aproximar dAquele que é Fogo Consumidor, sem serem fulminados? E olhando por outro ponto de vista, como pode um Deus três vezes santo e perfeitamente justo receber aqueles que até então viveram em completa rebelião contra Ele? Neste ponto temos que considerar a justificação, ou seja, “a manifestação da sua justiça no tempo presente, para Ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).

Todos os homens são concebidos em pecado e tão logo nascem, começam a cometer seus próprios pecados, transgredindo a Lei. Isto os torna culpados diante de Deus, e dignos de morte, morte eterna. A justiça de Deus precisa ser satisfeita, um preço precisa ser pago. Por isso Jesus morreu na cruz, para pagar o preço, no lugar e em favor daqueles que foram de antemão conhecidos e predestinados e agora chamados. Os pecados do Seu povo foram colocados sobre Ele e o preço pago satisfez a justiça de Deus, possibilitando que Deus se tornasse justificador de pecadores sem deixar de ser justo. Ao aceitar como satisfatório o sacrifício de Seu Filho, Deus assegurou a justificação de todos aqueles por quem Jesus morreu, os quais em tempo oportuno se apropriarão dessa justiça mediante a fé, pela operação milagrosa do Espírito Santo.

Tão certo que alguém foi amorosamente conhecido por Deus na eternidade e então predestinado a ser chamado em tempo e de modo oportuno, assim é certo que será justificado. O termo edikaiose é um termo forense e significa o pronunciamento de um veredito sobre uma pessoa, de que ela atende plenamente os requerimentos da Lei de Deus. E o modo indicativo do verbo mostra que isso é realizado de uma vez por todas. Dessa forma, todos os que são chamados e creem em Cristo, são desde agora declarados inocentes no tribunal de Deus.

Paulo começa o parágrafo em análise com uma declaração de certeza. “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Nos dois versos seguintes ele dá as razões para essa confiança. “Porquanto” no original é uma partícula lógica que significa porque, justificando a certeza expressa no verso anterior. E a expressão “a esses também glorificou” é o arremate dessa certeza, evidenciado pela forma como o apóstolo utiliza o verbo doxazo.

A glorificação dos justificados é ainda futura, pois se dará na volta do Senhor, porém Paulo a expressa como já realizada, tal a sua certeza na glorificação dos que são chamados segundo o Seu propósito. Mais adiante ele dirá que Deus dá “a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.23–24). Tudo o que acontece na vida do crente foi preordenado por Deus, visando o bem último daquele que foi chamado, quer dizer, a sua glorificação ou perfeita conformação à imagem do Filho!

Quando diz que os que amam a Deus foram predestinados “para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8:29) e para “a adoção de filhos” (Ef 1:5), o apóstolo tem em mente uma operação que é iniciada na conversão e que será completada na manifestação em glória do Senhor. “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque haveremos de vê-lo como Ele é” (1Jo 3.2). Os que creem em Cristo podem, e devem, ter certeza de sua eleição na eternidade, de que agora são filhos de Deus, o que o Espírito lhes testemunha no coração e que finalmente serão feitos iguais a Jesus. “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Aleluia!

Com Rm 8:29-30 o apóstolo pretende eliminar qualquer dúvida dos que amam a Deus de que eles são objetos dos cuidados do Senhor, pois foram “predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Esse propósito divino não começa com a conversão deles, nem mesmo no nascimento ou concepção. Na eternidade passada eles já eram conhecidos por Deus e objetos de Seu amor. Eles podem crer que Deus “em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1.4–5), muito antes do mundo existir.

O tempo não suspende este cuidado meticuloso de Deus para com seus eleitos. Eles são chamados e justificados e enquanto peregrinam neste mundo “todas as coisas cooperam para o bem” (Rm 8:28) deles, portanto o apóstolo podia dizer “estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Rm 8.38–39). Todos os aspectos de sua vida estão sob a amorosa providência de Deus, e mesmo os males redunda no bem deles.

Assim, não deve causar surpresa a certeza inexorável com que Paulo afirma que eles entrarão indubitavelmente na glória do Senhor. Esta certeza todos os que foram justificados ao crerem em Jesus devem ter. “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus.” (Rm 5.1–2). Os sofrimentos dessa vida, que afinal são para o bem deles, não tiram essa certeza. “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8.18).

Diante disso tudo, o que nos resta? Nada, além de irrompermos em louvor a Ele: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3)!

Soli Deo Gloria

A eleição incondicional torna Deus mentiroso?

Nas disputas teológicas, muitas vezes a vítima é o texto bíblico, que é espremido e usado para dizer o que não diz e oferecer pretextos a conclusões que lhe são totalmente alheias. É o caso do artigo intitulado "Na Doutrina da eleição Incondicional Seria Deus Verdadeiro?", em que João 3.31-33 é usado na tentativa de provar que se a eleição incondicional é verdadeira, Deus não é.

O artigo em si poderia ser melhor escrito, menos confuso e com uma correção dos erros de português (gramática e concordância), embora se proponha a uma análise do grego da passagem. E como não poderia faltar em artigos desse nível, os espantalhos do calvinismo estão presentes. Por exemplo, no calvinismo "a oferta do evangelho não é universal, Deus não deseja que os ouvintes (todos) sejam salvos, a pregação do evangelho não é para todos os perdidos e não existe boa vontade em Deus". Dessa forma, seria esperar demais que a doutrina da eleição incondicional fosse corretamente explicada, antes de ser combatida.

O texto bíblico em questão diz o seguinte:

“Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro.” (João 3.31–33)

As citações no artigo são das NVI, Jerusalém, NTLH, além do Textus Receptus, o que não vem ao caso, pois a tradução correta do texto não está em dúvida e a variante textual no versículo 32 é irrelevante para a discussão. O versículo que o autor analisa para levar à sua conclusão é o 33: "Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro".

É de se perguntar, de imediato, o que essa passagem ou esse texto tem a ver com a condicionalidade da eleição. Aparentemente, o autor já esperava por esse estranhamento, uma vez que reconhece que trata-se de uma luz "muito pouca percebível (sic) tanto por calvinistas, como por Arminianos". Talvez não se tenha percebido porque, nesse sentido, nada havia ali para perceber.

Depois de citar várias passagens que declaram que Deus é verdadeiro (Dt 32.4; Sl 31.5; 146.6; Is 65.16; Jr 10.10; Jo 7.28; Jo 8.26; Jo 17.3; Rm 3.4), o autor declara "o que me chamou a atenção é que se Deus é verdadeiro e creio que Ele o é, e o texto diz que Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro, comparando essa verdade com a doutrina da eleição incondicional, percebemos. (sic) Que essa doutrina com a afirmativa desse texto, é incompatível, e os motivos apresentaremos na sequência". A esperança aqui é que a falta de clareza na formulação da tese fosse compensada com uma apresentação clara dos motivos que levaram o autor à associação da eleição incondicional com a veracidade de Deus.

Mas a continuação da leitura frustra o leitor. Os motivos que ele então apresenta é que aquele que crê em Cristo e em seu testemunho confirma que Deus é verdadeiro e aquele que não crê, infama Deus como mentiroso. Não deve haver discordância quanto a isso. Mas dessa conclusão ele extrai outra: "portanto, diante dessa verdade, a mensagem Calvinista de uma dupla predestinação não pode ser verdadeira, uma vez que Deus já fez a sua escolha tanto para a salvação como para a perdição, e esse texto não trata com a possibilidade restritiva, o texto é aplicável a todas as pessoas e cada um dos indivíduos e não classes de pessoas". Ora, um eleito que aceita o testemunho de Cristo declara que Deus é verdadeiro, não importa se foi eleito incondicionalmente ou pela fé prevista. Não temos, até aqui, nenhum dos motivos prometidos.

Prosseguindo, e após fazer um intercurso por Jo 3:16, ele acrescenta que "a eleição incondicional a luz de João 3.31-33, se torna fraca e perde forças (sic) a medida que logicamente entendemos que uma vez que Deus já fez a sua escolha incondicionalmente, seria inútil o texto dizer que Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro". O lógica do autor parece que é que se Deus escolheu uma pessoa na eternidade, sem considerar nada antevisto nela, tal pessoa não poderá dar testemunho de que Deus é verdadeiro. Mas, por que não? Não há impossibilidade lógica, na verdade há uma certeza de fato, que aquele que foi eleito na eternidade (e de novo, não importa se condicional ou incondicionalmente) irá aceitar o testemunho de Cristo.

Ele termina dizendo que "a conclusão que chegamos é que na doutrina da eleição incondicional, Deus não seria verdadeiro; pelas seguintes razões", que seriam "Jesus quando foi levantado na cruz, o fez para atrair a todos, ou seja, morreu para obter a salvação para todos e cada um dos homens, e aplicar os benefícios da sua morte somente aos que creem", que "Deus de fato amou a humanidade inteira enviando seu filho para morrer por eles" e finalmente "como pode Deus ser bom, amável e justo na perspectiva calvinista?". Nenhuma dessas razões, e algumas nem razões são, implica que a eleição incondicional torna Deus mentiroso. Há um imenso salto lógico entre "Deus escolhe incondicionalmente" e "Deus é mentiroso", que não é preenchido com "quem aceita o testemunho, certifica que Deus é verdadeiro".

Lamentavelmente, motivado pela sua antipatia ao calvinismo, o que é compreensível, o autor maltratou o texto e escreveu um artigo ruim, o que não é desculpável. E o fato do mesmo ter sido publicado sob auspícios da Editora Reflexão não contribui em nada para ela se firmar como uma editora que se propõe a promover a teologia arminiana.

Soli Deo Glória

Creio que deva ler

Pela falta de tempo, optei por não resenhar a obra, limitando-me a listar alguns motivos pelos quais considero sua leitura recomendável e certamente proveitosa.

1. O tema em si

O tema do livro é importante e necessário, especialmente nos dias de hoje em que a doutrina cristã goza de pouca estima e até mesmo sofre de antipatia em muitos círculos evangélicos. Entre os evangélicos, o Credo dos Apóstolos sofre de preconceito histórico, por ser “reza católica”. Recentemente, porém, esse símbolo tem sido objeto de publicações evangélicas que vale a pena serem lidas. A obra do Franklin Ferreira é uma delas.

2. Os subsídios históricos

O livro traz vários subsídios históricos relacionados ao Credo e aos temas nele tratados. O autor recorre e cita com frequência os pais da igreja, os reformadores e outros personagens e situações não tão conhecidos, indicando fontes onde um estudo mais aprofundado pode ser feito. Vale destacar o apêndice com várias versões do Credo encontrados na história.

3. A linguagem utilizada

A linguagem do livro não soa acadêmica. Aliás, o livro parece ter sido pregado, não redigido. Por isso alguns irão notar repetições e reafirmações que talvez pareçam desnecessárias, uma vez que sempre se pode voltar as páginas, se necessário recapitular. Mas outros, como é o meu caso, a leitura parece mais leve e até mesmo mais pessoal. Além disso, fica evidente o tom devocional e a reverência no estudo da Trindade.

4. A contextualização
O autor não se limita ao estudo do Credo no contexto em que foi formulado. Faz aplicações modernas do mesmo. E isso resulta em críticas a várias práticas e ênfases doutrinárias da igreja moderna. Obviamente a pertinência das críticas e a concordância com elas dependerá de cada leitor, mas é interessante pelo menos pensar sobre elas.

5. A referência a minha pessoa

Por último, foi uma grata surpresa ver meu nome estampado na obra. Não na dedicatória ou nos agradecimentos, mas no texto do livro e na companhia de grandes vultos da história! Ficou curioso? Leia o livro e depois pesquise sobre o Clóvis mencionado.

FERREIRA, Franklin. Credo dos Apóstolos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2015. 280p

Soli Deo Gloria

Por que não devo me tornar um calvinista?

Um artigo publicado pelo irmão Everton Edvaldo procura apresentar as razões pelas quais uma pessoa não deve se tornar calvinista. Depois de reconhecer que “o interesse pelo calvinismo tem crescido bastante”, causando um “aumento do número de adeptos inclusive por irmãos de igrejas pentecostais”, ele lista os motivos para se rejeitar “os cinco pontos da soteriologia reformada”. São eles:

1. Ele alega que o calvinismo não é uma doutrina bíblica. Mas ele começa esse ponto negando que “esteja afirmando que não haja nada no calvinismo que não seja bíblico” e dá como exemplo a doutrina bíblica da depravação total. Poucas linhas antes, porém, ele citou a depravação total como um dos pontos característicos da soteriologia reformada! Ele também diz que na defesa dos seus cinco pontos o calvinismo utiliza-se de “muitas passagens”, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Em seguida ele se propõe demonstrar eleição incondicional como exemplo de falta de apoio bíblico. Ele admite que os calvinistas usam tanto passagens do Antigo como do Novo Testamento para apoiá-la. Ele diz que a maioria dos textos do Antigo Testamento que tratam de eleição não se refere a eleição para a salvação. Mas reconhece que “no Novo Testamento eles não encontram muita dificuldade para sustentar sua visão da eleição”.

Em resumo, ele admite que pelo menos num ponto os calvinistas são totalmente bíblicos e que para os outros contam com várias passagens bíblicas para apoiá-los, inclusive diz que na eleição incondicional não tem muita dificuldade em sustenta-la, ao contrário dos arminianos que precisam fazer uma exegese e interpretação de cada uma das muitas passagens. Agora, voltemos o argumento contra a posição dele. Que ele nos apresente uma lista de passagens bíblicas que declarem de forma expressa ou das quais se possa extrair, com boa exegese, a doutrina do livre-arbítrio, da graça preveniente, da fé como condição prevista para a eleição e da distinção entre salvo-eleito, precedida de uma clara definição de cada termo e então poderemos pesar o valor de seu motivo para rejeitar o calvinismo.

2. Ele afirma que o calvinismo não é conhecido pelos pais da igreja. A premissa do autor é que quanto mais antigo for um teólogo, mais pura é sua doutrina. Ledo engano. Apelar aos pais apostólicos, os mais antigos dos pais, é dar um tiro no pé. Quem de fato os leu percebe que distorceram a soteriologia paulina. Eu li, mas para que não fique somente a opinião de um calvinista, os arminianos Roger Olson e Justo González, para ficar apenas com dois deles, chegam a essa mesma conclusão.

Reconheço que os pais apostólicos e os pais apologistas não tomaram conhecimento do calvinismo. O mesmo ocorre em relação ao arminianismo. É anacrônico afirmar o contrário. Mas nada impede que os arminianos venham a endossar a soteriologia dos pais apostólicos, se ficam à vontade com desvios doutrinários. Que disputem com os católicos a posse dos pais apostólicos como precursores de sua teologia. Estamos bem servidos com Agostinho, a quem nenhum dos que o precederam faz sombra.

3. Ele acusa o calvinismo de ser historicamente propagador de intolerância. A acusação começa com Calvino, tendo como prova uma única citação de uma obra no mínimo questionável. E logo passa a acusar “os seus discípulos”, colocando Gomarus e Spurgeon no mesmo banco de réus. E fecha o caso com a “incontestável” prova de sua experiência, pela qual, afirma que de “cada dez calvinista que conheço, seis ou sete são intolerantes”. Abro mão de apresentar uma defesa das pessoas citadas, pois isso é irrelevante. O que o jovem afirma é que calvinismo leva à intolerância. Então, argumentos ad hominen à parte, quais das cinco doutrinas tem como implicação a intolerância? Se o autor afirma que o calvinismo propaga intolerância, então que apresente a lógica pela qual as doutrinas da graça produz intolerantes e, em contraposição, mostre como os pontos distintivos do arminismo contribuem para formar crentes mais tolerantes.

4. Ele informa que o calvinismo não é a única alternativa teológica para a mecânica da salvação. E isto e um fato. Aliás, sequer o cristianismo é a única alternativa. Há outros sistemas, cristãos e não cristãos, que se propõem a explicar como o homem pode ser salvo. Porém, os sistemas não podem estar todos certos, na verdade, a maioria deles descamba no inferno. O arminianismo é um sistema aceitável, ainda que falho. O calvinismo não é apenas uma alternativa, mas é a que reflete com mais fidelidade o evangelho de Jesus Cristo. Mesmo assim, ninguém precisa ser ou declarar-se calvinista. Basta que leia e creia no que a Bíblia diz. Esse é o conselho que tenho dado por vários anos.

Na sua conclusão, o autor diz que ninguém se torna calvinista lendo a Bíblia. A base de sua afirmação? Sua “longa e inquestionável” experiência. Eu conheço alguém creu na depravação total, na chamada eficaz, na segurança da salvação lendo apenas a Bíblia. E quando leu uma lição da escola dominical que explicava a doutrina da eleição, foi conferir na Bíblia e descobriu a eleição soberana. Isso antes de ter ouvido a palavra calvinismo, que aliás, quando ouviu foi de forma negativa e pensou que nunca seriam um.

Mas sim, há razões para você não ser um calvinista. A primeira delas é que terá que defender doutrinas desagradáveis aos ouvidos da maioria das pessoas. Um Deus que decide quem será salvo, que detém o controle de todas as coisas e que faz Sua vontade contra a vontade dos homens e que ainda assim pedirá contas de todas as suas criaturas não é algo que soe bem aos ouvidos delicados dos homens. A segunda delas é que você terá que mudar a visão otimista que tem das pessoas, a começar por você mesmo. Deverá reconhecer sua total incapacidade e absoluta dependência de Deus para cada detalhe de sua vida. A terceira, decorrente das primeiras, é que você nunca mais poderá se orgulhar de suas conquistas e vitórias, pois a glória por todas as suas realizações, grandes e pequenas, públicas ou particulares, deverá ser dada unicamente a Deus, além de ter que receber de bom grado todo mal que lhe ocorrer como vindo de Deus. Mas há uma única razão para que você seja um calvinista (embora jamais precise se denominar assim): o amor pela verdade.

Soli Deo Gloria

Um diálogo sobre eleição

- Você dá a entender que a eleição é irrevogável. Mas, como explicar o caso de Israel? Foram escolhidos por Deus, no entanto não creram no Messias, vindo a se perder. Para mim, se a eleição é como você diz, então Deus não cumpriu com a palavra dada.

- Você precisa entender uma coisa. A eleição não é corporativa, ou seja, nem todos os da nação de Israel são de fato israelita. Considere Abraão. Ele teve dois filhos, Ismael e Isaque, mas nem toda a sua descedência é considerada seus filhos, somente a linhagem que parte de Isaque...

- Calma aí, você não está levando em conta duas coisas que, ao meu ver, fazem toda diferença. A primeira é que os dois filhos dele eram de mães diferentes. Ismael era filho de uma comcubina, a escrava Agar, enquanto que Ismael era filho de sua esposa legítima, Sara. Logo, é natural que só os filhos de Isaque sejam considerados descendentes legítimos de Abraão. Além disso, os garotos já eram nascidos quando Deus prometeu que a descendência seria na linhagem de Isaque. E o comportamento de Ismael era reprovável. De qualquer modo, todo Israel é descendente de Isaque, então ainda acho que Deus não cumpriu sua promessa feita a Abraão, mesmo que se refira a uma descendência espiritual.

- Você interrompeu meu raciocínio, mas em continuação a ele verá que ter os mesmos pais e um bom comportamento não é determinante para ser escolhido por Deus. Considere os dois filhos de Isaque, Jacó e Esaú. Ambos são concebidos do mesmo pai, no mesmo ato sexual e são gerados no útero da mesma mãe. No entanto, um foi amado e escolhido por Deus, enquanto o outro foi odiado e rejeitado. E tem mais, essa escolha foi feita antes deles terem nascido, ou seja, antes que fossem capazes de fazer alguma coisa boa ou má. Veja que os critérios que você propôs para a escolha, descendência natural e boas ações, são irrelevantes. De fato, com esse registro histórico Deus quer deixar claro que no tocante à eleição não importa a nação, linhagem ou família, nem atitudes ou atos, mas somente a vontade divina. A eleição é eterna e incondicional, posto que prerrogativa da soberania divina.

- E você considera isso justo? Deus escolher uma pessoa e rejeitar outra, sem nenhuma consideração pelo que elas fizeram ou viriam a fazer? Eu não consigo ver justiça nisso!

- Em que pese seu veemente protesto, Deus não é nem um pouco injusto ao escolher um indivíduo e não outro, ou mesmo escolher alguns e não a nação inteira. Pois não se trata de justiça, e sim de misericórdia. A justiça é devida, a misericórdia, não. Ninguém pode ir ao tribunal reclamar que alguém não foi misericordioso para com ele. Assim é com a eleição. Deus disse a Moisés que teria misericórdia de quem Ele quisesse ter misericórdia e se compadeceria de quem quisesse ter compaixão. Por isso a eleição não é injusta, pois não depende da pessoa querer ou se esforçar, mas de Deus decidir ser misericordioso com ele. E não é só isso. Ele também endurece aqueles que ele não escolhe, para que sirvam aos seus santos propósitos. É o caso de Faraó, a quem Ele disse que o havia colocado em sua situação histórica para fazer notório o Seu poder e glória em toda a terra, endurecendo o coração dele com esse propósito.

- Espere aí, quer dizer que Deus não apenas elege e chama quem Ele quer, mas também age naqueles que ele rejeita, para que Seu poder seja manifesto? Com que direito então Ele reclama se alguém não lhe obedece, se no fim a pessoa faz exatamente o que Ele determinou que seria feito?

- Agora você está passando dos limites! Afinal, quem você pensa que é para questionar as decisões Deus? Coloque-se no seu lugar. A obra de um artesão pode questionar o modo como foi feita? Ou não tem o artista pleno direito sobre a sua obra, para fazê-la do modo como bem entender? Da mesma maneira Deus, como um oleiro, tem direito de pegar uma quantidade de massa e dela fazer alguns vasos para uma finalidade honrosa e outros para um uso humilhante. Que direito temos de questionar se ele, da mesma massa de pecadores, prontos para a perdição, faz de uns vasos de misericórdia e de outros vasos de ira, manifestando através destes sua ira e poder ao condená-los justamente, enquanto naqueles revela a grandeza de sua glória ao ser misericordioso para com eles?

Preste atenção, o que estou lhe dizendo é que a promessa de Deus não falhou para com a grande parte de Israel. Pois Isaías já havia dito que mesmo que o número de judeus fosse como grãos de areia na praia, apenas uma pequena parte, chamada de remanescente, é que seria salva. E que esse remanescente não seria formado com base em ascendência étnica ou algo que indivíduos tenham feito ou venham a fazer, mas pelo cumprimento da promessa divina, pois o mesmo Isaías atribui a formação dessa descendência espiritual ao Senhor dos Exércitos e que se dependesse do homem, essa descendência seria mais desolada que Sodoma e Gomorra.

Soli Deo Gloria

A resposta de Armínio ao artigo "Cristo morreu por todos os homens"

Na sua resposta a artigos difamatórios, Armínio responde ao um que lhe é atribuído: "Cristo morreu por todos os homens, e por cada indivíduo".

Sua resposta começa com uma negativa, a de que nunca fez tal afirmação, "quer em público, quer em particular, exceto quando a acompanhei de uma explicação", qual seja, a de que se por ela se pretende dizer que “o preço da morte de Cristo foi pago por todos e por cada um” ele concorda, mas se a ideia é a de que “a redenção que foi obtida por aquele preço é aplicada e transmitida a todos os homens e a cada um”, então ela a desaprova inteiramente.

Em seguida ele diz que se alguém discordar da primeira afirmação, que dê um jeito de responder às passagens (1Jo 2:2; Jo 1:29; Jo 7:51; Rm 14:15 e 2Pe 2:1,3) que "declaram que Cristo morreu por todos os homens". Segundo ele, tudo é uma questão de interpretação, de falar usando os termos que a Bíblia usa. De minha parte, eu acredito que há boas explicações para essas passagens, sem implicar a chamada expiação ilimitada. Mas por ora vamos focar na resposta Armínio.

Primeiro, como faz em grande parte dos artigos, Armínio procura se esquivar, negando ter declarado isso a seco, embora seja exatamente isso que defenda. Dada a sua concordância com ele, ressalvada a explicação dada, o mesmo nem mesmo pode ser chamado de difamatório. 

Em seguida, ele também se esquiva ao assumir uma das duas posições e pedir que os que discordam dela que se virem com as passagens que parecem apoiá-la, ao invés de mostrar, pelas Escrituras, como a primeira posição não implica a segunda. Ele diz que “o preço da morte de Cristo foi pago por todos e por cada um” e que por esse preço pago e recebido se obtém a redenção, mas mesmo assim, "somente os fiéis participariam dessa redenção". Ou seja, a morte de Cristo não é em si eficaz, ele precisa ser tornada eficaz por um outro ato, este realizado pelo homem.

Além disso, a posição assumida é incoerente. Segundo o arminianismo, Deus previu desde a eternidade quem iria crer, ou seja, quais indivíduos seriam os fiéis que participariam dessa redenção e, por implicação, os indivíduos que não creriam.  Mesmo sabendo disso, Deus designou que Seu Filho pagasse o preço da redenção daqueles que Ele sabia que não seriam redimidos de forma alguma. Tal ideia depõe contra a sabedoria divina.

Outra implicação é a de que, como Cristo pagou e o Pai recebeu o preço de redenção de quem não será salvo, pessoas cuja penalidade pelo pecado foi paga irão para o inferno. No inferno haverá pessoas por quem Cristo pagou plenamente o preço devido à salvação delas! Isso significa que para tais pessoas o sacrifício de Cristo foi em si mesmo em vão, pois nem a obra do Filho e nem a vontade do Pai juntas foram capazes de tornar o sacrifício válido para elas.

Soli Deo Gloria

O cessacionismo pode ser provado biblicamente? - Uma resposta a Peter Master, Parte 3

3. As línguas eram idiomas reais

Master afirma que a terceira prova da cessação dos dons é “o dom de línguas reais foi dado no dia de Pentecostes (e por um tempo depois), o que nunca foi visto desde então” e que “deveria ser óbvio para nós que as línguas milagrosas dos livros de Atos e 1 Coríntios nunca ocorreram desde aqueles dias”. Enquanto que nos “tempos do Novo Testamento, quando o falar em línguas foi concedido pelo Espírito a capacidade de falar em uma linguagem real, que eles nunca haviam aprendido, levava as pessoas que haviam crescido com eles a ficarem admiradas” o dom de línguas moderno é “um linguajar desconexo”. E sentencia: “nada como isso tem sido visto desde os tempos bíblicos”, pois “ao descrever línguas literais, a Bíblia nos adverte de forma eficaz que esses dons foram retirados. Eles simplesmente não têm acontecido em qualquer momento da história, em qualquer lugar do mundo, desde os primeiros dias da igreja”.

a) Em resposta, pode-se dizer que a natureza do dom de línguas nada tem a ver com a validade atual. O dom poderia ser uma linguagem espiritual e ter cessado, como poderia ser um idioma humano e permanecer até a volta do Senhor. A única justificativa válida para que o dom de línguas tivesse cessado devido a sua natureza é que ele se tratasse de um idioma específico que não existisse mais nos dias hoje. Não é o que o autor defende.

b) Porém, as evidências bíblicas apontam para o fato de que o dom de línguas era mais que meros idiomas humanos. Os termos relacionados com língua e linguagem vem das palavras gregas γλωσσα (glōssa), διαλεκτω (dialektos) e ἑτερόγλωσσος (heteroglossos). A primeira delas ocorre 50 vezes no Novo Testamento, em 17 delas refere-se ao órgão da fala, 7 vezes em referência à etnia e uma vez metaforicamente a “línguas de fogo” (At 2:3). Dialektos ocorre seis vezes no Novo Testamento (At 1:19; 2:6,8; 21:40; 22:2; 26:14) e sempre se refere à “língua ou a linguagem própria de cada povo” e nunca é utilizado em referência ao fenômeno do falar em línguas. Heteroglossos ocorre apenas em 1Co 14:21 e significa “alguém que fala em uma língua estrangeira”. Assim, o termo γλωσσα é praticamente um termo técnico para o dom de falar em línguas, enquanto que o falar idiomas humanos é jamais é referido com o uso desse termo.

Além disso, se assumirmos que dons de língua eram idiomas humanos, algumas passagens ficam no mínimo estranhas.

“E a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das línguas” (1Co 12:10).

Há dois dons associados, o falar em línguas e o interpretar essas línguas. Se o falar em línguas fosse mero idioma humano utilizado para pregar o evangelho a estrangeiros, porque seria necessário a presença de intérpretes? Pois o evangelista com o dom de línguas já falaria no idioma de seu ouvinte, tornando supérfluo o dom de interpretação. Contudo, Paulo diz que se alguém fala em línguas, ninguém o entende:

“Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios” (1Co 14:2).

Numa cidade cosmopolita como Corinto, era de se esperar que alguns entenderiam o que o que tinha o dom estava falando, mas o apóstolo diz que só Deus o entenderia e que em espírito pronunciava mistérios. Por isso, o dom de interpretação era sempre exigido:

“E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus” (1Co 14:27,28).

Além disso, Paulo orienta os que tinham o dom da seguinte forma:

“Por isso, o que fala em língua desconhecida, ore para que a possa interpretar” (1Co 14:13).

O que não faria nenhum sentido se línguas fosse mero idioma humano. Imagine, um judeu falando para um auditório, digamos, persa. Se ele, exercitando o dom de línguas, falasse persa, porque precisaria do dom de interpretar? Para traduzir para o aramaico novamente? O dom de línguas em conjunção com o dom de interpretação só faz sentido se o primeiro não se referir a idiomas humanos.

c) Ainda, o autor apela para o testemunho da história quando propõe provar biblicamente que o dom de línguas cessou por se tratar de idiomas humanos. Ele assume, equivocadamente, que o dom de línguas bíblico eram línguas dos povos do Novo Testamento e alega saber que esse dom “não têm acontecido em qualquer momento da história, em qualquer lugar do mundo, desde os primeiros dias da igreja”. Mas o fato é que ele não é onisciente para poder fazer tal afirmação. E contra ela bastaria um único testemunho de alguém que falou num idioma ou foi entendido de forma sobrenatural em qualquer lugar ou época. Não é nosso propósito argumentar com base na história, mas facilmente se encontraria um testemunho dessa natureza e o autor não teria como desmenti-lo.

Soli Deo Gloria


Continua...


O cessacionismo pode ser provado biblicamente? - Uma resposta a Peter Master, Parte 1

Peter Master é pastor do Tabernáculo Metropolitano de Londres, ocupando o púlpito onde pregaram John Gill e Charles Spurgeon. Ele levanta o seguinte problema: o cessacionismo pode ser provado [biblicamente]? Para responder afirmativamente a essa questão ele apresenta o que chama de seis provas bíblicas de que os dons carismáticos cessaram. Ele lista como dons carismáticos que cessaram completamente visões, palavras do conhecimento, palavras de sabedoria, profecias, curas e línguas. Como ele não os define, não nos ocuparemos disso. E como ele deixa de lado 1Co 13:8-10 por considera-lo controverso, também não recorreremos a ele, seguindo a ordem e a forma em que ele apresentou os seus argumentos (você pode baixar o ebook clicando aqui). 

1. Nenhum dom carismático ocorreu depois da era dos apóstolos

O argumento apresentado a título de prova é o seguinte: só apóstolos tinham dons carismáticos, pois tais dons eram sinais autenticadores de seu apostolado, logo, com a morte deles, nenhum dom permaneceu na igreja. Como apoio ao argumento ele cita 2Co 12:12: “Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos”. Ele recorre ainda a At 2:43: “Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos” e At 5:12: “Muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos. E costumavam todos reunir-se, de comum acordo, no Pórtico de Salomão” e, finalmente, Hb 2:3-4: “como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram; dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade”.

a) O argumento só prova que os apóstolos tinham e exerciam dons carismáticos enquanto viveram, mas não mais que isso. No Novo Testamento, apenas apóstolos organizavam igrejas. Agora que estão mortos, ninguém mais pode fazê-lo? Mas o argumento rui completamente quando vemos na Bíblia que os dons não eram exercidos apenas por apóstolos.

b) Para anular o argumento, basta que se tenha registro bíblico de dons carismáticos sendo exercidos por pessoas que não eram apóstolos. Comecemos com a promessa de Jesus:

“Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que creem: em meu nome, expelirão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados.” (Mc 16.16–18). 

Claramente “aqueles que creem” refere-se potencialmente a todos os crentes. Temos o caso do anônimo, que não era dos doze, expulsando demônios: 

“Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que, em teu nome, expelia demônios, o qual não nos segue; e nós lho proibimos, porque não seguia conosco” (Mc 9.38).

Jesus não disse “fizestes bem, pois não sendo um apóstolo não pode realizar sinais miraculosos”. Mas foi exatamente o contrário. E não poderia ser diferente, pois Jesus comissionou 72 discípulos para realizar milagres (os apóstolos eram apenas 12, lembra?):

“Curai os enfermos que nela houver e anunciai-lhes: A vós outros está próximo o reino de Deus” (Lc 10.9).

No dia de Pentecostes, Pedro diz que os sinais que estavam acontecendo era o cumprimento da profecia de Joel, citando textualmente: 

“E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão.” (At 2.17–18). 

Note que o texto faz referência a pessoas do sexo feminino, inclusive. Só o fato de haver mulheres entres os que haviam de profetizar prova que os apóstolos não seriam os únicos a receber dons carismáticos, como Pedro diz mais à frente:

“Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2.39).

De fato, vemos mulheres profetizando no Novo Testamento, como as filhas de Filipe e as mulheres de Corinto:

“Tinha este quatro filhas donzelas, que profetizavam” (At 21.9). 

“Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada” (1Co 11.5).

Ananias é outro exemplo de uma pessoa que não era apóstolo e que realizou cura, de ninguém menos que o apóstolo Paulo:

“Então, Ananias foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, dizendo: Saulo, irmão, o Senhor me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas, para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo. Imediatamente, lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e tornou a ver. A seguir, levantou-se e foi batizado.” (At 9.17–18) 

Tudo isso concorda com o ensinamento de Paulo sobre os dons espirituais que estavam sendo exercidos na igreja de Corinto, sem a presença de um apóstolo: 

“A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso. Porque a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; a outro, operações de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las.” (1Co 12.7–10). 

Não negamos a singularidade do ministério apostólico. Nem que os mesmos exerceram tal ministério com demonstrações de poder do Espírito Santo. Porém, quando eles viviam, outras pessoas também recebiam e exerciam dons espirituais e não é correto afirmar que os dons foram sepultados com eles.


O problema de Mateus 11:12

A salvação é pela graça ou depende do esforço pessoal? Boa parte dos cristãos responderiam com um enfático "Sola Gratia!". Alguns, porém, diriam que é pela graça cooperando com esforço humano. E ainda alguns poucos afirmariam que depende fundamentalmente do empenho pessoal. Nestes dois últimos casos, pode-se buscar apoio em Mateus 11:12 onde Jesus diz que “desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele” (Mt 11.12). Entretanto, este texto é de difícil tradução e representa um desafio considerável de interpretação.

Algumas traduções existentes em português dizem que "o reino dos céus é tomado à força" (NVI, 2000; TB, 2010), que "o reino dos céus é tomado por esforço" (ARA, 1993), que "se faz violência ao Reino dos céus" (ARC, 1968; ARC, 1969; ARC, 1995), que "o reino dos céus tem sido assaltado com violência" (APC, 1991) e que "o Reino do Céu tem sido atacado com violência" (NTLH, 2000). Sobre a identidade dos que tomam o reino é dito que são “os que usam de força” (NVI, 2000), "os que se esforçam" (ARA, 1993; TB, 2010) ou ainda "os violentos" (APC, 1991; NTLH, 2000). Há boas razões para se optar por uma ou outra tradução, mas obviamente não podem todas estar igualmente corretas.

O termo traduzido para a expressão "tomado por esforço” e suas alternativas é biazetai, derivado de biazo, que significa "usar a violência, aplicar a força; forçar, infligir violência em". O termo só ocorre aqui e em Lc 16:16, mas cognatos de biazetai são usados na Septuaginta. Exatamente na mesma forma encontrada em Mt 11:12, o verbo só ocorre no apócrifo 4Macabeus 2.8, com o significado de “aprisionar, tornar subserviente, dominar, forçar, violentar, subjugar, dominar, pisar”. O verbo está na voz passiva. A expressão “os que se esforçam” é tradução de biastai, substantivo que significa “forte, impetuoso, que faz uso da força, violento”, “o que emprega a violência, pessoa impetuosa” ou “uma pessoa que apela para a violência para alcançar os seus objetivos”.

Uma questão que surge na análise de biazetai e biastai é se são usados de uma forma favorável ou desfavorável, ou seja, se denotam algo bom ou mau. Como vimos, biazetai está na voz passiva, o que significa literalmente que o reino “é forçado, vencido, superado, tomado pela tormenta”. A voz passiva de biazo só ocorre no sentido de uma subjugação hostil ou violenta, portanto, mau. No grego extra-bíblico biastes ocorre em Filo sempre num mau sentido. Uma vez que o termo biazetai na voz passiva implica o uso de força e até mesmo de violência, o sentido de que o reino sofre violência de natureza desfavorável parece-nos a mais provável.

Isto tudo considerado, entendemos que a leitura mais natural do texto é a que diz que desde o tempo de João o reino de Deus e seus trabalhadores sofrem violência da parte de seus inimigos, que tentam evitar ou usurpar o governo divino. O grego indica que o reino está sendo atacado e que homens violentos estão tratando de impedir que outros entrem. A prisão de João e a rejeição e execução de Jesus a acontecer logo em seguida corroboram essa interpretação. Sendo assim, os biastai (violentos) são os líderes religiosos dos dias de Jesus, que reclamavam por conta próprio um direito sobre o reino ou os grupos revolucionários que pretendiam um reino terreno, como os zelotes e outros ativistas, mas não os discípulos de Jesus. Herodes pode ser incluído nessa lista pois prendeu e iria executar João.

O contexto parece reforçar a ideia de que o reino é atacado por inimigos e que seus súditos são perseguidos. No capítulo anterior, quando Jesus enviou os doze dizendo “pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus” (Mt 10:7) avisou “eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos” (Mt 10:16) e acrescentou “acautelai-vos, porém, dos homens; porque eles vos entregarão aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas...” (Mt 10:17) “e odiados de todos sereis por causa do meu nome” (Mt 10:22). No capítulo 12 a perseguição anunciada no capítulo 10 e implícita no capítulo 11, começa a tornar-se explícita: “E os fariseus, vendo isto, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado” (Mt 12:2) e “os fariseus, tendo saído, formaram conselho contra ele, para o matarem” (Mt 12:14).

Os violentos, então, não seriam discípulos determinados, mas inimigos que tentam arrebatar o reino pela força, não entrando e tentando impedir que outros tomem parte dele. Os discípulos de Jesus são descritos no mesmo capítulo, não como homens violentos ou valentes, mas sim como pequeninos e oprimidos: “Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve. Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11:25-27).

Se esta interpretação estiver correta, o uso de Mt 11:12 para defender o esforço humano na obtenção da salvação é impróprio. Aliás, advogar a interpretação de que o reino de Deus é conquistado por pessoas esforçadas levanta sérios problemas com o ensino claro e inequívoco de que salvação é unicamente pela graça e pelo poder de Deus.

Soli Deo Gloria

Nota: está é uma versão condensada e adaptada de um artigo mais completo, com as fontes consultadas, que pode ser obtido aqui: O problema de Mateus 11:12.

Quem é atraído pela cruz de Cristo?

A extensão da expiação é um dos temas mais debatidos pelos interessados em teologia. Duas posições são defendidas fervorosamente, uma delas afirmando que Jesus morreu para tornar possível a salvação do mundo inteiro e outra que Jesus morreu para tornar certa a salvação dos eleitos somente. O texto acima geralmente é apresentado contra esta última posição, com a suposição de que todos significa "todas as pessoas do mundo, sem exceção".

Consideremos, primeiro, quem está falando. O início do verso 30, "Então, explicou Jesus", deixa claro que o "eu" e "a mim mesmo" do versículo se referem a Jesus. Os pronomes eu e mim são enfáticos, uma vez que a forma verbal indica o sujeito e torna dispensável o uso de pronomes. Certamente a intenção de Jesus é fazer um forte contraste entre a Sua pessoa e o "príncipe deste mundo" mencionado no verso anterior, e que seria expulso pela Sua morte.

Para saber com quem Jesus estava falando, precisamos recorrer ao contexto. Voltando para o versículo 20 lemos que “entre os que subiram para adorar durante a festa, havia alguns gregos; estes, pois, se dirigiram a Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e lhe rogaram: Senhor, queremos ver Jesus” (Jo 12.20–21, RA). É importante destacar que esses gregos eram gentios e não judeus helenistas, nascidos na Diáspora. E foi no momento que estes estrangeiros foram apresentados a Jesus por André e Filipe que Jesus se referiu à Sua morte e aos resultados dela. É fundamental ter em mente que o discurso de Jesus foi provocado pela presença dos gregos e dirigido a um auditório misto, composto por judeus e gentios.

Estando claro quem diz e para quem o faz, podemos nos concentrar no que é dito. Jesus faz duas afirmações envolvendo Sua pessoa e vamos considera-las separadamente. Primeiramente Ele diz “e Eu, quando for levantado da terra”. Ser “levantado” é uma referência à sua morte, como o narrador interpreta as palavras de Jesus: “Isto dizia, significando de que gênero de morte estava para morrer” (João 12.33, RA). A mesma linguagem é utilizada em Jo 3:14. É interessante que a voz do verbo levantar é passiva, o que indica que neste caso Jesus não realiza, mas sofre a ação descrita. Convém observar, também, que a palavra “quando” é um advérbio condicional, que indica que a ação seguinte depende do evento ou ação descritos, e por isso o sentido é de “e se, no caso de”.

A declaração de Jesus que está no centro da controvérsia é “atrairei todos a mim mesmo”. O verbo atrair está na voz ativa, significando que é Jesus quem toma a iniciativa e realiza a ação e no modo indicativo, que é utilizado quando quem fala descreve uma ação como sendo real, em oposição a algo que é apenas possível, contingente ou intencional. Compare com a declaração do verso anterior, em que Jesus diz “...agora o seu príncipe será expulso” (João 12.31, RA). O mesmo modo verbal é utilizado, logo dizer que Jesus apenas tentará atrair as pessoas para Si, sem a certeza de que isto ocorrerá de fato, implica reconhecer que Ele apenas tentará expulsar a Satanás, uma vez que as duas coisas, a expulsão de um e a atração de outros são expressas da mesma maneira, e como resultados da mesma ação: a morte de Jesus.

Além disso, quando considerado teologicamente, o termo atrair implica mais que meramente exercer influência moral. Não é como se o Senhor se tornasse atraente na cruz, o pecador olhando-O ali fosse até Ele. Jesus já havia dito que “ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6.44, RA), e a palavra traduzida por trazer e atrair é a mesma nos dois casos. O termo aponta tanto para o fato de que é Deus quem atrai como para a realidade de que o homem por si mesmo não pode ir a Cristo. Mais, indica que o homem resiste a esta atração divina, contudo o Senhor vence esta resistência em seus escolhidos. Em vários lugares encontramos indicações de que esta atração não é passiva, pelo contrário, é ativa e poderosa. Os autores bíblicos utilizam-se dela para descrever o puxar redes cheia de grandes peixes (João 21:6,11), o arrastar pessoas ao tribunal (Atos 16:19; Tg 2:6) e o sacar uma espada da bainha (João 18:10).

Mas se considerarmos que essa atração é tanto iniciativa de Deus quanto invencível, como evitar a conclusão de que todas as pessoas serão salvas, uma vez que Jesus diz que atrairá a todos? Chegamos ao cerne do problema. A saída fácil é ignorar o que foi dito até agora e fazer do Crucificado apenas atraente e não Aquele que por Sua morte efetivamente atrai aqueles por quem deu a vida e salva de fato. Nem sempre o caminho fácil e agradável é o correto a seguir.

Examinemos com atenção a expressão todos. Notemos, inicialmente, que “pessoas” ou “homens” não constam do original, como aparece em algumas traduções, e inclusive há quem sugira que o termo se refira a todas as coisas, tudo. Portanto, se a palavra todos for tomada em sentido absoluto, forçosamente teremos que incluir os anjos caídos e os seres inferiores como objetos da atração de Cristo. Ou seja, algum tipo de limitação não expressa é admitida mesmo por universalistas.

O Novo Testamento apresenta diversos lugares em que a palavra todos não pode significar todos os indivíduos sem exceção.  Por exemplo, quando se diz que “ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judéia, e toda a província adjacente ao Jordão” (Mt 3:5, RA) e “toda aquela cidade saiu ao encontro de Jesus” (Mt 8:34, RA), obviamente as cidades citadas não ficaram abandonadas enquanto cada homem, mulher e criança iam ver João Batista e Jesus. O mesmo quando lemos que “toda a cidade se ajuntou à porta” (Mc 1:33, RA). E quando Jesus diz que “todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores" (Jo 10:8, RA) não pode significar, por exemplo, que Abraão, Jó e Daniel eram assaltantes. Por falar em Abraão, quando seu servo partiu “levando consigo de todos os bens dele” (Gn 24:10, RA), é claro que não deixou Abraão na miséria e a promessa de Joel, “derramarei o meu Espírito sobre toda a carne” (Jl 2:28, RA), não implica que cada indivíduo sobre a terra é batizado com o Espírito. Quando lemos que Jesus percorria a Judéia “curando todas as enfermidades” (Mt 4:23, RA) devemos lembrar que houve lugar em que “não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles” (Mateus 13.58, RA). Assim também, quando lemos que os discípulos “tendo partido, pregaram em toda parte” (Mc 16:20, RA), não devemos pensar que pregaram em todos os lugares do mundo, mas em toda parte a que foram. Em cada caso, o contexto nos esclarece quando todos significa todos sem exceção, a maior parte, todos os tipos e classes, etc.

Agora podemos voltar a falar do contexto em que a declaração de Jesus está inserida. Lembramos que o Seu discurso foi feito na presença e motivado pelos não judeus que queriam vê-lo. Portanto, o todos significa que não apenas judeus, mas também gentios seriam atraídos, ou seja, todos sem distinção e não todos sem exceção. Vemos isso de forma recorrente no quarto evangelho. A salvação não depende de laços familiares ou de raça (1:13; 8:31-59), Jesus é o Salvador não apenas dos judeus, mas também dos samaritanos e em consequência, do mundo (4:42), Ele tem outras ovelhas que não são do redil dos judeus, mas do mundo gentio (10:16), morrerá não só pela nação, mas para reunir num só os filhos de Deus que estão dispersos (11:51). Entendemos, então, que por todos o Senhor estava dizendo “não apenas os judeus, mas também os gentios”.

É o que também entende a maioria dos comentaristas e eruditos. Robertson diz que todos “não significa cada homem individual, pois alguns, como Simeão disse (Lc 2:34) são repelidos por Cristo”. Bartley diz que a expressão é uma “referência ao alcance universal do evangelho, que inclui os gentios”. Wiersbie afirma que "Cristo menciona os gentios quando fala em ser "levantado" na cruz. Em Mateus 10:5 e 15:24, Cristo ensinou seus discípulos a evitarem os gentios; todavia, agora ele diz que os gentios também serão salvos pela cruz. (...) Cristo tinha que ser levantado para que 'todos' (v. 32, judeus e gentios) fossem atraídos a Ele. Isso não significa todas as pessoas, sem exceção, mas todas as pessoas, independente da raça". Para Hernandez, todos significa “tanto gregos (ali presentes, v. 20) como judeus, como pessoas de todo povo e nação. Isto enfatiza a composição multinacional e racial do povo de Deus”. Lembrando que “um momento antes os gregos pediram para ver Jesus”, Hendriksen, diz que “Jesus promete atrair a todos os homens a si mesmo. Este todos os homens, neste contexto que coloca gregos junto aos judeus, deve significa homens de toda nação”, acrescentando que “estes gregos representam as nações – os eleitos de todas as nações – que chegariam a aceitar a Cristo com fé viva, através da graça soberana de Deus”. Matthew Henry também diz que “o grande desígnio do Senhor Jesus é atrair a si todos os homens, não só os judeus, mas também os gentios de toda raça, língua, nação e povo”. Luiz Palau também entende que “a cruz é como um ímã ao qual tanto judeus como gentios são atraídos”. Walvoord, interpretando o ser atraído como ser salvo, afirma que “aqueles que serão salvos não virão apenas dos judeus, mas também de toda tribo, língua, linhagem e nação (Ap 5:9)”. Cabal é firme ao declarar que “isto não é universalismo (salvar a todos), mas o evangelho é oferecido a todos sem distinção – atraindo pessoas de todos os tipos para Si mesmo”. Finalmente, para Dockery, todos significa “todas as pessoas sem distinção de sexo, raça, posição social ou nacionalidade”.

Concluindo, a interpretação de que Cristo atrai redentivamente todos os homens a si mesmo, a menos que se advogue o universalismo, impõe que a atração referida por Cristo seja meramente potencial, e não real. Longe de glorificar a Deus e exaltar a obra de Seu Filho na cruz, tal tentativa acaba por anular a eficácia intrínseca de Seu sacrifício, fazendo-a depender, ao final, da vontade do homem e não da intenção divina.

Soli Deo Gloria