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A Cadeia Inquebrável da Salvação

Salvação e cinco pontos remetem ao acróstico TULIP, conhecidos como os cinco pontos do calvinismo: total depravação, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Mas neste artigo gostaria de enfatizar outros cinco pontos, relacionados com a ordem de salvação, os quais são geralmente referidos como elos da cadeia inquebrável da salvação divina, que começando na eternidade passada, mergulha na história e continua na eternidade futura.

O texto que nos guiará é Romanos 8:29-30, citado na epígrafe. É importante, desde já, chamar atenção para alguns detalhes importantes sobre esse texto. O primeiro deles, é que os objetos das ações divinas nele mencionados são pessoas e não algo nelas ou delas. As reiteradas referências “aos que” prova tratar-se de pessoas e não de coisas, caso em que o apóstolo usaria “os que” para referir-se aos objetos. O segundo é que se trata de um grupo definido e fixo de pessoas. Novamente, a referência “aos que... também os” implica isso. Os mesmos “aos que” referidos na eternidade passada são os mesmos “aos que” referidos na história e são os mesmos “aos que” que entram na glória. Ninguém é excluído, nenhum é adicionado. Estes dois fatos devem ser levados em conta ao considerarmos os que se segue.

A expressão “de antemão conheceu” é tradução de uma única palavra: proegno. O prefixo pro- indica um conhecimento prévio e eterno e é traduzido por “de antemão” na expressão. Ele denota algo ocorrido na eternidade passada e não na história corrente. Por sua vez, egno é o modo indicativo ativo do verbo ginosko, em seu aspecto aoristo, que significa “conheceu”. Aplicado ao conhecimento divino, não é mera presciência ou previsão. Deus é onisciente, conhecendo num ato simples tudo o que há para ser conhecido, real ou possível. E sendo presciente, conhece todos os fatos desde sempre. Mas proginosko tem um significado mais profundo que o conhecimento exaustivo e infalível de todas as pessoas, coisas e eventos.

De fato, ginosko traz em si a ideia de conhecimento relacional ao invés de mera constatação antecipada de fatos. Quando Deus diz “povo que não conheci me serviu” (2Sm 22.44; Sl 18:43) e Cristo sentencia aos ímpios “nunca vos conheci” (Mt 7.23) não estão falando que não sabiam que eles existiam, mas declarando que não havia um conhecimento relacional. De igual modo, quando o Senhor declara “Eu te conheci no deserto” (Os 13.5), Jesus informa “conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim” (Jo 10.14) e Paulo assegura “o Senhor conhece os que lhe pertencem” (2Tm 2.19) a ideia envolvida não é de mero conhecimento, mas de relacionamento íntimo. Aliás, os judeus usavam a palavra conhecer para se referir à relação sexual entre um homem e uma mulher: “contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mt 1.25).

Assim sendo, ser conhecido de antemão significa ser escolhido como objeto do amor redentivo de Deus desde a eternidade. O verbo conhecer tem o sentido bíblico de conhecer intimamente com amor (Jr 1:5; Os 13:5; Am 3:2; 1Co 8:3; Gl 4:9) e expressa a peculiar complacência de Deus para com os Seus. É importante salientar que o texto não informa nada como condição para esse pré-conhecimento eletivo, sejam fé, amor, obras ou obediência. É uma decisão livre e soberana, como indica seu uso em 1Pe 1:20, com referência a Jesus.

Muitos negam que esse pré-conhecimento tenha caráter eletivo, pois ele seria determinativo e eles insistem que a presciência é meramente constatativa. Entendem que “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2) significa tão somente que Deus previu a fé deles e os elegeu por constatar que eles creriam Nele. Mas tanto aqui como em Paulo, não vemos a fé mencionada como objeto da presciência divina. Aliás, em lugar algum nas Escrituras fé, amor ou outra coisa qualquer é indicada como condição para a eleição. Os eleitos são conhecidos por Deus desde antes da fundação do mundo, para serem objetos do Seu amor e depositários da Sua graça salvadora, sem consideração de algo neles previsto que os diferenciasse dos demais.

Ao conhecimento eletivo de Deus segue-se logicamente a predestinação. Muitas vezes essa ordem é invertida e a predestinação é vista como tratando-se de eleição e reprovação, daí a expressão dupla predestinação, bastante comum. Porém, a ordem bíblica é eleição, seguida da predestinação dos eleitos. Biblicamente falando, a predestinação diz respeito unicamente aos eleitos, não havendo sentido bíblico falar em predestinação para a perdição. “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou”.

O termo bíblico predestinou é tradução do verbo proorize, indicativo ativo de proorizo. O prefixo pro- tem o mesmo sentido apontado no seu uso em proegno, ou seja, indica uma ação realizada na eternidade. Portanto, não se pode distinguir uma ordem cronológica entre o conhecimento divino de Seus eleitos e a predestinação deles, embora uma ordem lógica tenha que ser admitida, com a eleição precedendo a predestinação, como mencionado. O verbo horizo carrega o sentido de destinar, determinar, ordenar, designar, estabelecer limites. Portanto, proorize significa predeterminar, decidir de antemão, destinar desde a eternidade.

A questão de quem são os predestinados é bastante clara e não admite controvérsia: são os que foram conhecidos de antemão. O ponto é a que eles foram predestinados, e o complemento esclarece que é “para serem conformes à imagem de seu Filho”. Em outro texto, o destino decidido por Deus para seus eleitos é “a adoção de filhos” (Ef 1:5). Isto de forma alguma nega que a predestinação tenha em vista a salvação, pois esta engloba tudo o que é dito nesta passagem, do conhecimento prévio à glorificação final. Podemos dizer, então, que a predestinação é a preordenação divina de todas as coisas visando conduzir seus eleitos à fé, à adoção de filhos e à progressiva conformação à imagem de Seu filho, a ser completada na glorificação final.

Se mais precisa ser dito sobre a predestinação, é destacar sua força, que vem do fato de que quem predestina é Deus, o Todo-Poderoso! Somos “predestinados segundo o propósito Daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1:11). Sugerir que um predestinado pode vir a apostatar e finalmente se perder é insultar o conhecimento, a sabedoria e o poder do Senhor. É quebrar a cadeia inquebrável. Deus decidiu o destino glorioso dos crentes, nada, nem mesmo os próprios crentes podem alterar esse decreto divino.

Conforme vimos até aqui, os termos pré-conhecidos e predestinados indicam atos realizados na eternidade passada. Mas agora a cadeia de ouro desce para o tempo para indicar a realização do propósito divino, ou seja, a etapa em que os eleitos “são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Assim, “aos que predestinou, a esses também chamou”. E como foi com os termos anteriormente tratados, aqui também requer-se uma compreensão do que seja essa chamada.

Chamar é utilizado tanto para se referir a um convite geral, externo e não eficaz, como a uma chamada pessoal, interna e eficaz. O desconhecimento desses dois aspectos do chamado leva muitos a confundirem-se quanto à sua eficácia. Quando Jesus disse que “muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” (Mt 22.14) estabeleceu uma diferença no número dos que são chamados e dos que são eleitos, sendo aqueles em maior quantidade que estes. Claramente Ele não estava se referindo ao chamado interior, feito pelo Espírito Santo. Porém no texto que estamos considerando, todos os que foram predestinados na eternidade são eficazmente chamados no devido tempo. Aqui, o número de chamados coincide exatamente com o número dos eleitos. Isso porque, em Paulo, ekalese, forma verbal derivada de kaleo, chamar, é sempre eficaz quando feita por Deus (Rm 4:17; 9:7,11,24; 1Co 1:9; 7:17-24; Gl 1:6,15; 5:8,13; Ef 4:1,4; Cl 3:15; 1Ts 2:12; 4:7; 5:24; 2Ts 2:14; 1Tm 6:12; 2Tm 1:9).

Da confusão entre o chamamento exterior pelo evangelho e a chamada interior pelo Espírito Santo resulta a má compreensão e a consequente oposição à doutrina da graça irresistível. Sim, os homens sempre podem resistir, e de fato resistem, ao convite geral do evangelho, o qual é acompanhado de promessa, “muitos são chamados”. Mas nos eleitos desde a eternidade, a graça vence essa resistência, pela operação milagrosa do Espírito no coração deles, “mas poucos, escolhidos”. Se alguém crê, é porque foi predestinado a isso, “creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48).

Dada a natureza caída do homem, em que todas as suas faculdades estão afetadas pelo pecado e o leva a se opor a Deus e a tudo o que Ele oferece, o crente deve ser imensamente grato a Deus por agir nele, tirando seu coração de pedra e dando-lhe um coração de carne, capaz de amá-lo e desejá-lo. E a certeza de que todos os que foram de antemão conhecidos e predestinados na eternidade serão irresistivelmente chamados em tempo oportuno, é um estímulo à evangelização, pois Deus chama seus eleitos à fé mediante a pregação do evangelho.

É maravilhoso considerar o que Deus fez até aqui. Elegeu, predestinou e atraiu para Si pecadores perdidos. Mas como pecadores, transgressores da santa Lei podem se aproximar dAquele que é Fogo Consumidor, sem serem fulminados? E olhando por outro ponto de vista, como pode um Deus três vezes santo e perfeitamente justo receber aqueles que até então viveram em completa rebelião contra Ele? Neste ponto temos que considerar a justificação, ou seja, “a manifestação da sua justiça no tempo presente, para Ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).

Todos os homens são concebidos em pecado e tão logo nascem, começam a cometer seus próprios pecados, transgredindo a Lei. Isto os torna culpados diante de Deus, e dignos de morte, morte eterna. A justiça de Deus precisa ser satisfeita, um preço precisa ser pago. Por isso Jesus morreu na cruz, para pagar o preço, no lugar e em favor daqueles que foram de antemão conhecidos e predestinados e agora chamados. Os pecados do Seu povo foram colocados sobre Ele e o preço pago satisfez a justiça de Deus, possibilitando que Deus se tornasse justificador de pecadores sem deixar de ser justo. Ao aceitar como satisfatório o sacrifício de Seu Filho, Deus assegurou a justificação de todos aqueles por quem Jesus morreu, os quais em tempo oportuno se apropriarão dessa justiça mediante a fé, pela operação milagrosa do Espírito Santo.

Tão certo que alguém foi amorosamente conhecido por Deus na eternidade e então predestinado a ser chamado em tempo e de modo oportuno, assim é certo que será justificado. O termo edikaiose é um termo forense e significa o pronunciamento de um veredito sobre uma pessoa, de que ela atende plenamente os requerimentos da Lei de Deus. E o modo indicativo do verbo mostra que isso é realizado de uma vez por todas. Dessa forma, todos os que são chamados e creem em Cristo, são desde agora declarados inocentes no tribunal de Deus.

Paulo começa o parágrafo em análise com uma declaração de certeza. “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Nos dois versos seguintes ele dá as razões para essa confiança. “Porquanto” no original é uma partícula lógica que significa porque, justificando a certeza expressa no verso anterior. E a expressão “a esses também glorificou” é o arremate dessa certeza, evidenciado pela forma como o apóstolo utiliza o verbo doxazo.

A glorificação dos justificados é ainda futura, pois se dará na volta do Senhor, porém Paulo a expressa como já realizada, tal a sua certeza na glorificação dos que são chamados segundo o Seu propósito. Mais adiante ele dirá que Deus dá “a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.23–24). Tudo o que acontece na vida do crente foi preordenado por Deus, visando o bem último daquele que foi chamado, quer dizer, a sua glorificação ou perfeita conformação à imagem do Filho!

Quando diz que os que amam a Deus foram predestinados “para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8:29) e para “a adoção de filhos” (Ef 1:5), o apóstolo tem em mente uma operação que é iniciada na conversão e que será completada na manifestação em glória do Senhor. “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque haveremos de vê-lo como Ele é” (1Jo 3.2). Os que creem em Cristo podem, e devem, ter certeza de sua eleição na eternidade, de que agora são filhos de Deus, o que o Espírito lhes testemunha no coração e que finalmente serão feitos iguais a Jesus. “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Aleluia!

Com Rm 8:29-30 o apóstolo pretende eliminar qualquer dúvida dos que amam a Deus de que eles são objetos dos cuidados do Senhor, pois foram “predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Esse propósito divino não começa com a conversão deles, nem mesmo no nascimento ou concepção. Na eternidade passada eles já eram conhecidos por Deus e objetos de Seu amor. Eles podem crer que Deus “em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1.4–5), muito antes do mundo existir.

O tempo não suspende este cuidado meticuloso de Deus para com seus eleitos. Eles são chamados e justificados e enquanto peregrinam neste mundo “todas as coisas cooperam para o bem” (Rm 8:28) deles, portanto o apóstolo podia dizer “estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Rm 8.38–39). Todos os aspectos de sua vida estão sob a amorosa providência de Deus, e mesmo os males redunda no bem deles.

Assim, não deve causar surpresa a certeza inexorável com que Paulo afirma que eles entrarão indubitavelmente na glória do Senhor. Esta certeza todos os que foram justificados ao crerem em Jesus devem ter. “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus.” (Rm 5.1–2). Os sofrimentos dessa vida, que afinal são para o bem deles, não tiram essa certeza. “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8.18).

Diante disso tudo, o que nos resta? Nada, além de irrompermos em louvor a Ele: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3)!

Soli Deo Gloria

Por que não devo me tornar um calvinista?

Um artigo publicado pelo irmão Everton Edvaldo procura apresentar as razões pelas quais uma pessoa não deve se tornar calvinista. Depois de reconhecer que “o interesse pelo calvinismo tem crescido bastante”, causando um “aumento do número de adeptos inclusive por irmãos de igrejas pentecostais”, ele lista os motivos para se rejeitar “os cinco pontos da soteriologia reformada”. São eles:

1. Ele alega que o calvinismo não é uma doutrina bíblica. Mas ele começa esse ponto negando que “esteja afirmando que não haja nada no calvinismo que não seja bíblico” e dá como exemplo a doutrina bíblica da depravação total. Poucas linhas antes, porém, ele citou a depravação total como um dos pontos característicos da soteriologia reformada! Ele também diz que na defesa dos seus cinco pontos o calvinismo utiliza-se de “muitas passagens”, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Em seguida ele se propõe demonstrar eleição incondicional como exemplo de falta de apoio bíblico. Ele admite que os calvinistas usam tanto passagens do Antigo como do Novo Testamento para apoiá-la. Ele diz que a maioria dos textos do Antigo Testamento que tratam de eleição não se refere a eleição para a salvação. Mas reconhece que “no Novo Testamento eles não encontram muita dificuldade para sustentar sua visão da eleição”.

Em resumo, ele admite que pelo menos num ponto os calvinistas são totalmente bíblicos e que para os outros contam com várias passagens bíblicas para apoiá-los, inclusive diz que na eleição incondicional não tem muita dificuldade em sustenta-la, ao contrário dos arminianos que precisam fazer uma exegese e interpretação de cada uma das muitas passagens. Agora, voltemos o argumento contra a posição dele. Que ele nos apresente uma lista de passagens bíblicas que declarem de forma expressa ou das quais se possa extrair, com boa exegese, a doutrina do livre-arbítrio, da graça preveniente, da fé como condição prevista para a eleição e da distinção entre salvo-eleito, precedida de uma clara definição de cada termo e então poderemos pesar o valor de seu motivo para rejeitar o calvinismo.

2. Ele afirma que o calvinismo não é conhecido pelos pais da igreja. A premissa do autor é que quanto mais antigo for um teólogo, mais pura é sua doutrina. Ledo engano. Apelar aos pais apostólicos, os mais antigos dos pais, é dar um tiro no pé. Quem de fato os leu percebe que distorceram a soteriologia paulina. Eu li, mas para que não fique somente a opinião de um calvinista, os arminianos Roger Olson e Justo González, para ficar apenas com dois deles, chegam a essa mesma conclusão.

Reconheço que os pais apostólicos e os pais apologistas não tomaram conhecimento do calvinismo. O mesmo ocorre em relação ao arminianismo. É anacrônico afirmar o contrário. Mas nada impede que os arminianos venham a endossar a soteriologia dos pais apostólicos, se ficam à vontade com desvios doutrinários. Que disputem com os católicos a posse dos pais apostólicos como precursores de sua teologia. Estamos bem servidos com Agostinho, a quem nenhum dos que o precederam faz sombra.

3. Ele acusa o calvinismo de ser historicamente propagador de intolerância. A acusação começa com Calvino, tendo como prova uma única citação de uma obra no mínimo questionável. E logo passa a acusar “os seus discípulos”, colocando Gomarus e Spurgeon no mesmo banco de réus. E fecha o caso com a “incontestável” prova de sua experiência, pela qual, afirma que de “cada dez calvinista que conheço, seis ou sete são intolerantes”. Abro mão de apresentar uma defesa das pessoas citadas, pois isso é irrelevante. O que o jovem afirma é que calvinismo leva à intolerância. Então, argumentos ad hominen à parte, quais das cinco doutrinas tem como implicação a intolerância? Se o autor afirma que o calvinismo propaga intolerância, então que apresente a lógica pela qual as doutrinas da graça produz intolerantes e, em contraposição, mostre como os pontos distintivos do arminismo contribuem para formar crentes mais tolerantes.

4. Ele informa que o calvinismo não é a única alternativa teológica para a mecânica da salvação. E isto e um fato. Aliás, sequer o cristianismo é a única alternativa. Há outros sistemas, cristãos e não cristãos, que se propõem a explicar como o homem pode ser salvo. Porém, os sistemas não podem estar todos certos, na verdade, a maioria deles descamba no inferno. O arminianismo é um sistema aceitável, ainda que falho. O calvinismo não é apenas uma alternativa, mas é a que reflete com mais fidelidade o evangelho de Jesus Cristo. Mesmo assim, ninguém precisa ser ou declarar-se calvinista. Basta que leia e creia no que a Bíblia diz. Esse é o conselho que tenho dado por vários anos.

Na sua conclusão, o autor diz que ninguém se torna calvinista lendo a Bíblia. A base de sua afirmação? Sua “longa e inquestionável” experiência. Eu conheço alguém creu na depravação total, na chamada eficaz, na segurança da salvação lendo apenas a Bíblia. E quando leu uma lição da escola dominical que explicava a doutrina da eleição, foi conferir na Bíblia e descobriu a eleição soberana. Isso antes de ter ouvido a palavra calvinismo, que aliás, quando ouviu foi de forma negativa e pensou que nunca seriam um.

Mas sim, há razões para você não ser um calvinista. A primeira delas é que terá que defender doutrinas desagradáveis aos ouvidos da maioria das pessoas. Um Deus que decide quem será salvo, que detém o controle de todas as coisas e que faz Sua vontade contra a vontade dos homens e que ainda assim pedirá contas de todas as suas criaturas não é algo que soe bem aos ouvidos delicados dos homens. A segunda delas é que você terá que mudar a visão otimista que tem das pessoas, a começar por você mesmo. Deverá reconhecer sua total incapacidade e absoluta dependência de Deus para cada detalhe de sua vida. A terceira, decorrente das primeiras, é que você nunca mais poderá se orgulhar de suas conquistas e vitórias, pois a glória por todas as suas realizações, grandes e pequenas, públicas ou particulares, deverá ser dada unicamente a Deus, além de ter que receber de bom grado todo mal que lhe ocorrer como vindo de Deus. Mas há uma única razão para que você seja um calvinista (embora jamais precise se denominar assim): o amor pela verdade.

Soli Deo Gloria

Luteranos e reformados

Apesar de toda a conformidade que há entre elas - que se estende até mesmo à confissão da predestinação — houve, desde o princípio, uma importante diferença entre a Reforma alemã e a suíça.

As diferenças nos países e nas pessoas em que Lutero e Zwínglio desempenharam seu papel, as diferenças entre os dois quanto à origem, formação, caráter e experiência contribuíram para separar seus caminhos. Não demorou muito para se tornar evidente que os dois reformadores tinham opiniões diferentes. Em 1529, em Marburg, um acordo tinha sido feito — mas somente no papel. E quando Zwínglio morreu e Calvmo, apesar de sua elevada consideração pela abordagem conciliatória de Lutero em relação à doutrina da Ceia do Senhor, basicamente se colocou ao lado de Zwinglio, a divisão entre o Protestantismo luterano e o reformado se aprofundou e se tornou um fato que não pôde mais ser negligenciado.

As pesquisas históricas sobre as diferenças características entre eles em anos recentes demonstraram claramente que, na base da separação, há uma diferença de princípio. Em épocas passadas, os eruditos simplesmente resumiam as diferenças dogmáticas sem reduzi-las a um princípio comum. Max Goebel, ao contrário, foi o primeiro a produzir uma explicação histórica e fundamental da diferença entre eles. Desde então, várias pessoas - Ullmann, Semisch, Hagenbach, Ebrard, Herzog, Schweizer, Baur, Schneckenburger, Guder, Schenkel, Schoeberlein, Stahl, Hundeshagen, para mencionar apenas alguns — continuaram essa pesquisa.

A diferença parece ser melhor comunicada dizendo que o cristão reformado pensa teologicamente, e o luterano, antropologicamente. A pessoa reformada não se contenta com um ponto de vista exclusivamente histórico, mas eleva seus olhos para a ideia, para o eterno decreto de Deus. Em contraste, o luterano toma sua posição no meio da história da redenção e não sente necessidade de entrar mais profundamente no conselho de Deus. Para o reformado, portanto, a eleição é o coração da igreja; para o luterano, a justificação é o artigo pelo qual a igreja fica de pé ou cai. Entre os reformados, a questão primária é: Como a glória de Deus pode ser promovida? Entre os luteranos, a questão é: Como o ser humano obtém a salvação? A luta dos reformados é, acima de tudo, contra o paganismo — idolatria; a dos luteranos, contra o Judaísmo — justificação pelas obras. O reformado só descansa quando consegue seguir o curso de todas as coisas retrospectivamente até chegar ao decreto de Deus, indo ao encalço do "motivo" das coisas, e, prospectivamente, fazer todas as coisas serem subservientes à glória de Deus; o luterano se contenta com o "o que" e desfruta a salvação da qual ele, pela fé, é um participante.

A partir dessa diferença de princípio, as controvérsias dogmáticas entre eles com respeito à imagem de Deus, pecado original, pessoa de Cristo, ordem da salvação, sacramentos, governo eclesiástico, ética, etc.) podem ser facilmente explicadas.

Herman Bavink
In: Dogmática Reformada

Resumindo a posição do calvinismo sobre os grandes problemas da religião

Resumindo o resultado de nossa investigação até aqui, eu posso expressar minha conclusão como segue. Em cada um dos quatro grandes problemas da religião, o Calvinismo tem expresso sua convicção em um dogma apropriado e cada vez tem feito aquela escolha que mesmo agora, após três séculos, satisfaz a procura mais ideal e deixa o caminho aberto para um desenvolvimento sempre mais rico. Primeiro, ele considera a religião, não no sentido utilitário ou eudomístico, como existindo por causa do homem, mas por Deus e para Deus somente. Este é seu dogma da Soberania de Deus. Secundariamente, na religião não deve haver nenhuma intermediação de qualquer criatura entre Deus e a alma, - toda religião é a obra imediata do próprio Deus no coração interior. Esta é a doutrina da Eleição. Em terceiro, a religião não é parcial mas universal, - este é o dogma da graça comum ou universal. E, finalmente, em nossa condição pecaminosa, a religião não pode ser normal, mas deve ser soteriológica, - esta é sua posição no duplo dogma da necessidade de Regeneração, e da necessitas Sola Scripturae.

Abraham Kuyper 
In: Calvinismo

O calvinismo e a mediação humana

A religião por causa do homem traz consigo a posição de que o homem tem de agir como um mediador por seu próximo. A religião por causa de Deus exclui inexoravelmente toda mediação humana. Visto que o principal propósito da religião continua sendo ajudar o homem, e visto ser entendido que o homem é digno da graça por sua devoção, é perfeitamente natural que o homem de piedade inferior deva invocar a mediação do homem mais santo. Outro deve procurar por ele o que não pode procurar por si mesmo. O fruto está pendurado em galhos muito altos, e, portanto, o homem que alcança mais alto deve colhê-lo, e passá-lo ao seu companheiro desamparado.

Se, pelo contrário, a exigência da religião é que cada coração humano deva dar glória a Deus, nenhum homem pode comparecer diante de Deus em nome de outro. Então, cada ser humano deve comparecer pessoalmente por si mesmo, e a religião atinge seu alvo somente no sacerdócio universal dos crentes. Até mesmo o bebê recém-nascido deve ter recebido a semente da religião do próprio Deus; e no caso dele morrer sem ser batizado, não deve ser enviado para um limbus innocentium, mas, se eleito, entra, tal como os longevos, na comunhão pessoal com Deus por toda eternidade.

A importância deste segundo ponto na questão da religião, culminando, como faz, na confissão da eleição pessoal, é incalculável. Por um lado, toda religião deve inclinar-se para tornar o homem livre, para que por meio de uma clara afirmação ele possa expressar aquela impressão religiosa geral, gravada sobre a natureza inconsciente pelo próprio Deus. Por outro lado, cada apresentação de um sacerdote ou feiticeiro interpondo-se no campo da religião prende o espírito humano em uma cadeia que o oprime mais miseravelmente quanto mais sua piedade cresce em fervor.

Na Igreja de Roma, mesmo nos dias de hoje, os bons católicos estão mais rigorosamente confinados nas prisões do clero. Somente o Católico Romano cuja piedade tem diminuído é capaz de assegurar para si mesmo uma liberdade parcial por afrouxar, parcialmente, o laço que o liga à sua igreja. Nas igrejas luteranas as prisões clericais são menos confinadoras, todavia estão longe de serem relaxadas inteiramente.

Somente nas igrejas que assumem a sua posição no Calvinismo, encontramos esta independência espiritual que habilita o crente a opor-se, se necessário for, e por causa de Deus, até mesmo ao mais poderoso oficial na igreja. Somente aquele que pessoalmente permanece diante de Deus por sua própria conta, e goza uma comunhão ininterrupta com Deus, pode apropriadamente exibir as gloriosas asas da liberdade. Tanto na Holanda, na França, na Inglaterra, bem como na América, o resultado histórico oferece a evidência mais inegável do fato que o despotismo não tem encontrado antagonistas mais invencíveis e liberdade de consciência mais corajosa, nem mais resolutos campeões que os calvinistas.

Em última análise, a causa deste fenômeno encontra-se no fato de que o efeito de toda interpretação clerical invariavelmente era, e deve ser, produzir uma religião externa e sufocá-la com formas sacerdotais. Somente onde toda intervenção sacerdotal desaparece, onde a eleição soberana de Deus desde toda eternidade liga a alma interior diretamente ao próprio Deus, e onde o raio da luz divina entra imediatamente na profundeza de nosso coração, - somente ali a religião, em seu sentido mais absoluto, alcança sua realização ideal.

Abraham Kuyper
In: Calvinismo.

Todos os reformadores eram predestinistas

Todos os reformadores do século XVI, seguindo o exemplo de Agostinho e do apóstolo Paulo, - como eles o entenderam - adotaram, sob o senso controlador da depravação humana e da graça salvadora, e em antagonismo à auto-justificação legalista, a doutrina da dupla predestinação que decide o destino eterno de todo homem. Também não parece ser possível, logicamente, fugir da conclusão se admitirmos as duas premissas do catolicismo romano e do protestantismo ortodoxo, a saber, a condenação de todos os homens em Adão e a limitação da graça salvadora na presente vida. Todas as confissões ortodoxas rejeitam o universalismo e ensinam que alguns homens são salvos e alguns são perdidos e que não há salvação além túmulo. Os predestinarianos mantém que esse duplo resultado resultado decorre de um duplo decreto, que a história deve harmonizar-se com a vontade divina e não pode derrotá-la. Eles raciocinam do efeito para a causa, do fim para o começo.

No entanto, houve algumas diferenças características nas visões dos líderes reformadores sobre este assunto. Lutero, como Agostinho, partiu da total inabilidade moral ou do servum arbitrium; Zwinglio, da ideia de uma toda-inclusiva providentia; Calvino do eterno decretum absolutum

O predestinismo agostiano e luterano é moderado pelo tornar-se membro da igreja e o princípio sacramental da regeneração batismal. O predestinismo calvinista confina a eficácia sacremental ao eleitos e torna o batismo dos não eleitos numa forma vazia; mas, por outro lado, abre a porta para a extensão da graça eletiva para além dos limites da igreja visível. A posição de Zwinglio é peculiar: por um lado, ele foi tão longe em seu supralapsarianismo a ponto de fazer Deus o autor sem pecado do pecado (como o magistrado ao infligir a pena capital ou o soldado na batalha que são inocentemente culpados de morte); mas, por outro lado, ele minou a própria fundação do sistema agostiniano, ou seja, a condenação de todos pelo pecado de um; ele admitiu o pecado hereditário, mas negou a culpa herdada; e ele incluiu todos os infantes e pagãos piedosos no reino dos céus. Tal ponto de vista foi universalmente abominado, como perigoso e herético.

Melâncton, depois de mais estudos e reflexões, recuou na direção semi-pelagiana, e preparou o caminho para o arminianismo, o qual surgiu, independentemente, no coração do calvinismo no começo do século XVII. Ele abandonou sua visão anterior, a qual ele caracterizou como fatalismo estóico, e propôs um esquema sinergístico, o qual é um compromisso entre agostianismo e semipelagianismo, e fez a vontade humana cooperadora com a precedente graça divina, mas negou o mérito.

A fórmula de Concórdia (1577) rejeitou tanto o calvinismo como o sinergismo, e ensinou ainda, por uma inconsistência lógica, a inabilidade total e a eleição incondicional, bem como a vocação universal.

Schaff, P., & Schaff, D. S. (1910). History of the Christian church.
Tradução livre: CincoSolas
* Críticas e sugestões que melhorem a tradução são mais que bem-vindas

A Cruz é o princípio fundador do calvinismo

Se nós quisermos ver uma nova cosmovisão implantada nos corações dos homens, os homens tem que ser convertidos a Deus em Jesus Cristo por meio de Sua Palavra e Espírito, quer dizer, por meio da fé nas boas novas da cruz. Nesta mensagem, o homem é restaurado a Deus, seu Criador e Salvador, seu pecado é perdoado, sua natureza melhorada, sua relação com o mundo mudada e seu futuro garantido. Só o evangelho é capaz de mudar a vida e o pensamento de um homem, de dentro para fora. Esta mensagem é vital para o êxito de nossa cosmovisão.

A morte e ressurreição de Cristo é o princípio transformador do calvinismo. Pela morte de Jesus, Cristo mesmo apresenta os pecadores como justos diante de Deus. Por Sua ressurreição vence a morte e nos assegura uma glorificação futura. Jesus mesmo pagou o castigo inteiro de nossos pecados de modo que  já não há condenação para os que estão Nele. O juízo de Deus em Cristo tem sido desfeito. Nos redimiu da culpa do pecado. Mas a verdade é que tem feito muito mais que isso. Também nos salvou do poder do pecado. Como Machen observou faz muitos anos, "O Novo Testamento não termina com a morte de Cristo... a morte resultou na ressurreição, e Sua ressurreição como Sua morte, foi por nós. Jesus ressuscitou dos mortos para uma vida de glória e de poder, e a esta vida introduz aqueles por quem morreu. O cristão, com base na obra redentora de Cristo, não está somente morte para o pecado, mas também vive para Deus". Esta vida se vive para Deus, diante de Sua face e consiste de todas nossas atividades humanas aqui na terra. E o que aqui Deus começou, na glória será consumado e estaremos para sempre com o Senhor.

O calvinismo carece de poder sem esta mensagem, porque a cruz é o seu princípio fundador. Na cruz, toda sua cosmovisão se encontra. A redenção e restauração a Deus por meio de Seu Filho, que é a imagem do Deus invisível, é o poder de Deus para a transformação: do pecado para a santidade, do pecador ao santo, da criação caída para a nova criação. Esta é uma obra de Deus e o calvinismo não verá êxito a menos que Deus atue poderosa e milagrosamente nos corações dos homens. O calvinismo não é uma mera filosofia, sinal um princípio vital religioso de fé em Deus por meio de Jesus Cristo, onde Cristo é Soberano da nova criação, mediante Seu sangue e ressurreição. O homem não pode salvar-se a si mesmo. O homem não pode encontrar Deus por si mesmo. O homem, estando morto em seus pecados, não pode levantar-se. Só Deus pode levantar o homem e dar-lhe nova vida. A salvação é de Deus.

Nicholas Lammé
In: Una mente cristiana

Como os calvinistas explicam Hebreus 6:4-6?

“É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia. Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada” (Hb 6.4–8) .
O texto da carta aos Hebreus destacado acima é um dos mais difíceis das Escrituras. No passado o mesmo foi utilizado por grupos hereges chamados de donatistas e novacianos, os quais apelavam a ele para negar que os que uma vez negaram a fé pudessem ser readmitidos à comunhão da igreja. Diante da dificuldade de oferecer uma resposta apropriada aos hereges, muitos chegaram a questionar a canonicidade da carta.

E sobre o texto já se debruçaram estudiosos da envergadura de Calvino, Lutero, Mathew Henry, Tertuliano e um sem número de eruditos. Embora alguns deles tenham defendido a sua interpretação como sendo a correta, os mais prudentes não só reconheceram a dificuldade, como evitaram ser dogmáticos e conformaram-se em esperar a volta do Senhor para afirmar uma certeza sobre o que o autor ensina. É óbvio que escrevendo depois de homens com tal envergadura, nem sonho dizer qual estava certo, menos ainda apresentar uma interpretação inédita e melhor que a deles. Limito-me a fazer um apanhado das principais possibilidades.

O desafio arminiano. Quando um arminiano apresenta essa passagem como um desafio a um calvinista, em geral está defendendo a possibilidade de perda da salvação. Identificam os que foram “iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro” como crentes regenerados e o fato de que “caíram” significando que perderam a salvação. Não é uma interpretação livre de problemas, pois implica que “é impossível outra vez renová-los para arrependimento”, ou seja, tais pessoas não podem ser trazidas de volta à salvação. E levanta a questão de qual pecado configuraria essa queda? O escritor diz que “se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados” (Hb 10.26, ACF). Quem de nós já não cometeu tal pecado? Sugere-se que se trata de apostasia, mas a palavra apostasia não ocorre no texto em estudo.

As respostas calvinistas concentram-se principalmente em negar que o autor da carta esteja se referindo a verdadeiros crentes ou que a queda implique real perda da salvação, podendo tratar-se de um caso hipotético ou uma outra consequência real, que não a perdição eterna. Nenhuma delas é livre de dificuldades.

1. Não eram regenerados. Vários calvinistas e alguns arminianos não identificam as pessoas descritas como sendo crentes regenerados, mas falsos professantes, que estiveram perto de se converterem. Para eles “iluminados” refere-se compreender a mensagem do evangelho, “provaram” significam que apenas degustaram e o “participantes” que usufruíram de um graça comum, não necessariamente salvífica. Em geral, entendem o “caíram” como sendo apostasia total e definitiva. Sendo assim, foi do conhecimento da verdade que essas pessoas caíram, não da possessão pessoal dela, saíram de uma participação relativa do Espírito Santo, não da participação da natureza divina. Por rejeitarem o evangelho que compreenderam, chegaram a um tal endurecimento que se pode dizer que “é impossível outra vez renová-los para arrependimento”.

2. A queda é hipotética. Essa posição encontra representantes entre muitos calvinistas e alguns arminianos. Para esses intérpretes, o texto descreve crentes regenerados e uma apostasia final e irreversível. Porém, trata-se de uma situação hipotética, o que poderia, em tese, acontecer se um verdadeiro crente se apostatasse total e finalmente da fé. Se fosse possível um verdadeiro crente perder a salvação, então seria impossível para ele recuperá-la. Os que defendem essa posição o apoiam-se no fato de que o escritor não usa os pronome “nós” ou “vós” ao descrever a queda dos iluminados, como o faz nas porções anteriores e posteriores de sua mensagem (Hb 6:9).

3. A queda não é a perda da salvação. Finalmente, uma outra posição afirma que o texto descreve verdadeiros crentes, porém a queda não significa perda da salvação. A perda seria no progresso espiritual ou dos galardões. Seguindo o raciocínio de Hb 6:1-3, o autor estaria tratando do progresso na fé. Assim, o ser iluminado refere-se ao batismo, provar o dom espiritual é participar da ceia, participar do Espírito Santo é ser batizado com o mesmo e provar os poderes do mundo vindouro é receber/realizar os sinais que acompanham os que creem. Se após tudo isso a pessoa cai, vale dizer, deixa de progredir, é impossível voltar no início e recomeçar com o arrependimento, pois seria como crucificar de novo o Salvador. Por isso o autor espera de seus leitores coisas melhores, ou seja, o contínuo progresso na fé. Uma versão dessa explicação faz referência à perda dos frutos e dos galardões, representada pela terra queimada em Hb 6:8, onde o que de fato é queimado é o que a terra produziu.

Minha posição. O que eu creio é que Hebreus 6:4-6 deve ser lido e interpretado à luz do ensino do Novo Testamento sobre a segurança eterna dos crentes. Parafraseando C. I. Scofield, o “se” de Hb 6:6 não pode anular o “em verdade” de Jo 5:24. E não é o caso de contrapor um verso a outro, e sim de iluminar um texto particular com o ensino geral das Escrituras.

Jesus disse “em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5.24). Disse também que “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10.28). Paulo afirma que “agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1), que fomos “selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória” (Ef 1.13–14) e que sendo assim “quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós” (Rm 8.34). Pedro completa que somos “guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo” (1Pe 1.5). As passagens bíblicas que asseguram a preservação do salvo são tantas que citar todas aqui alongaria demais esse parágrafo.

Portanto, à luz dessas passagens e muitas outras é impossível que alguém que foi eleito, predestinado, chamado e justificado se apostate total e finalmente e perca a salvação, não sendo glorificado (Rm 8:28-30). Como a Escritura não se contradiz, Hebreus 6:4-6 não pode estar ensinando que um regenerado pode perder a salvação. Restam três possibilidades: as pessoas referidas não eram crentes verdadeiros, o que se perde não é a salvação ou é uma situação hipotética. Eu não poderia afirmar com certeza qual delas é a correta (inclino-me mais para a da “queda hipotética”), mas isso não é necessário, pois sei o que o texto não ensina: a perda da salvação. O texto simplesmente não afirma que um crente pode, de fato, a perder a salvação e interpretar dessa forma força ceder a um erro parecido com os de Donato e Novaciano.

Soli Deo Gloria

Breves considerações sobre a graça preveniente

Graça preveniente significa a graça que antecede qualquer ação do homem, relacionada à sua salvação. Por isso é também chamada de graça precedente, graça antecedente ou graça preventiva. Enfim, graça preveniente significa que Deus toma a iniciativa na salvação do homem. E que sem ela, ninguém chega a ser salvo.

Daí concluímos que acreditar na graça preveniente não é coisa de arminiano somente. Pelagianos acreditam na graça preveniente, assim como luteranos e calvinistas. O que diferencia cada um deles é o entendimento que tem sobre a natureza da graça preveniente, bem como a sua eficácia, considerada a salvação final do homem.

Para Pelágio, a graça de Deus referia-se às faculdades com as quais Deus dotou o homem, particularmente a razão. Uma vez que ele não acreditava nos efeitos da Queda nos descendentes de Adão, mesmo após o pecado ter entrado no mundo, o homem conserva tais faculdades, com o mesmo potencial que tinham quando o homem foi criado. Assim, quando o homem escolhe obedecer a Deus, tem em si a capacidade para tal, posto que foi com ela dotado na criação. Logo, a ação capacitadora de Deus antecedeu a ação realizadora do homem.

Os arminianos creem que a Queda afetou a capacidade de iniciar qualquer movimento de retorno a Deus. A graça preveniente consiste que a morte de Jesus age no sentido de anular os efeitos da natureza caída, de modo que agora a pessoa pode cooperar com a graça de Deus. Assim, diante do chamado do evangelho, o homem pode, por escolha pessoal, rejeitar ou aceitar a oferta da salvação, ou seja, seu livre-arbítrio foi restaurado. Daí admitirem que a salvação é sinergista, pois o homem coopera com Deus para sua salvação, não no sentido de realizar alguma obra, mas de estender a mão para receber a dádiva oferecida.

O entendimento luterano da graça preveniente é parecido ao do arminianismo, embora difira num detalhe. O homem pode, de si mesmo rejeitar a graça preveniente, de modo que ela não se torne salvificamente eficaz. Por outro lado, o homem não é capaz de cooperar com a graça no sentido de realizar a salvação, isto tudo é obra da graça, sem a participação ativa do homem. Isto coloca a visão luterana a meio caminho entre o arminianismo e o calvinismo, no que diz respeito à graça preveniente.

No calvinismo, a graça preveniente é regeneradora, ou seja, antes dela o homem encontra-se morto e necessita ser vivificado antes de qualquer ação. No que diz respeito à salvação, ela é sempre eficaz, pois todos àqueles a quem ela é concedida serão salvos certamente. Diz-se então que essa graça é irresistível. Disso decorre que apenas os eleitos recebem a graça preveniente, pois se fosse uma graça universal toda a humanidade seria salva.

O propósito deste artigo é esclarecer as diversas posições quanto à graça preveniente, e não defender uma delas e atacar as outras. Porém, não posso concluir o mesmo deixando em suspenso qual seria a minha posição. Então, concluo dizendo que das posições apresentadas, creio que a representada pelo calvinismo é mais consistente com a verdade bíblica.

Soli Deo Gloria

Como os calvinistas explicam Tito 2:11?

Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tito 2.11)  
Um dos recursos bíblicos mais utilizados contra o calvinismo é Tito 2:11. É tido como inexplicável à luz da soteriologia calvinista. Por isso é citado contra a doutrina da eleição incondicional, da graça irresistível e da expiação limitada. Mas será que é isso mesmo ou existe alguma explicação que harmonize esse versículo com as doutrinas da graça como entendidas pelos reformados? Comecemos considerando as palavras e expressões isoladas, depois as implicações da declaração como um todo e, finalmente, a interpretação à luz do contexto.

“Graça de Deus” refere a tudo aquilo que o Senhor faz para redimir o homem do pecado e leva-lo para o céu. Ela é livre - não devida a ninguém, e incondicional - não havendo nenhuma condição prévia e nenhum pagamento posterior. Essa graça se manifestou (apareceu, brilhou) na vinda de Jesus, pois se diz que “a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1:17). Sem dúvida, essa graça é salvífica, pois é qualificada como salvadora, no sentido de meio ou instrumento que produz a salvação. Nas outras quatro ocorrência do termo é traduzida simplesmente como salvação. “Todos os homens” é uma expressão comum na Bíblia, ora significando todos os homens sem exceção, ora todos os tipos ou classes de homens. Em cada caso, o sentido deve ser buscado no contexto.

A relação entre “a graça de Deus se manifestou salvadora” e “todos os homens” apresenta dificuldades, exceto que se advogue o universalismo. Em geral, tanto calvinistas como não calvinistas negam o universalismo, e para harmonizar “graça que salva” com “todos os homens” precisam ponderar os lados da equação. Os não calvinistas atacam a graça, seja tornando-a insuficiente e requerendo uma ação do homem para completa-la, seja diminuindo a sua eficácia, tornando-a apenas potencialmente salvadora, podendo ser resistida e frustrada pela vontade do homem. Os calvinistas, por sua vez, interpretam “todos os homens” à luz do contexto e chegam à conclusão que se refere a toda classe de homens, e não a todos os homens sem exceção.

Notemos, primeiramente, que o versículo começa com a palavra “porquanto”, que é uma conjunção exploratória lógica, ou seja, indica que o que segue é uma justificativa do que precede. Em Tt 2:11-14 Paulo está justificando os imperativos éticos dos primeiros versículos. Sendo assim, “porquanto” indica que devemos ler o que vem antes, no caso, Tito 2:1-10. Ao ler esses versos, notamos algumas coisas. Primeiro, que Paulo está se referindo a pessoas crentes, pois proclama uma ética que deriva da sã doutrina. Segundo, que se trata de pessoas de diversas classes (homens, mulheres, idosos, jovens, escravos). Terceiro, que são gentios, em sua maioria, pelo menos. Se fossem judeus, estariam familiarizados com uma ética derivada da doutrina e não precisariam da justificativa de Paulo. Portanto, “todos os homens” é uma referência à toda classe de homens salvos pela graça, ou seja, independente de etnia, sexo, idade, classe social, todos os que são salvos pela graça devem adornar à sã doutrina com um modo de vida digno.

Mas não são apenas os versos anteriores a Tt 2:11 que limitam a referência paulina aos crentes de diversas classes. O verso 12 continua dizendo que a graça se manifestou “educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.12). A graça não se manifesta passivamente, potencialmente salvadora apenas. Tampouco vem, nos salva e vai embora. Mas permanece conosco e efetivamente nos educa quanto à maneira de viver neste mundo. A referência aqui, é óbviamente às classes de crentes referida na parte inicial do capítulo, como os pronomes indicam. O verso 13, “aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus” (Tt 2.13), também limita a referência de Paulo aos crentes, únicos para os quais a volta de Cristo se constitui numa “bendita esperança”. E, finalmente, o verso 14 declara “o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.14). O pronome “nos” e a expressão “um povo exclusivamente seu” deixam claro que Paulo tem em mente os crentes, tão somente.

Como vimos, advogar que “todos os homens” refere-se a todos os homens que viveram em todos os tempos e lugares implica numa graça “salvadora que não salva” todos aqueles a quem é manifestada. Por outro lado, o capítulo inteiro está falando de crentes, primeiro prescrevendo um comportamento ético como resultado da sã doutrina, depois justificando esse comportamento frente à manifestação da graça salvadora e finalmente apontando para os resultados presentes e futuros de se viver de acordo com esses mandamentos. Tomar “todos os homens” no sentido da humanidade inteira, sem excluir nenhuma pessoa, é tirar a frase do contexto em que está inserida e dar-lhe um sentido baseado em nossos pressupostos.

Resta-nos observar o que diz o verso 15: “Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a autoridade. Ninguém te despreze.” (Tt 2.15)

Soli Deo Gloria

A importância de se conhecer a Deus

Em Romanos 1, o apóstolo Paulo diz que Deus revelou-se através das coisas criadas tão claramente, e tão manifestamente, que cada pessoa neste mundo conhece o eterno poder e a deidade de Deus. E ainda assim o pecado primário da raça humana é tomar esse conhecimento de Deus e puxá-lo para baixo, como diz o apóstolo Paulo em Romanos, suprimir a verdade pela injustiça, e então trocar esta verdade por uma mentira. E servir a criatura ao invés do Criador. A troca é entre o Incorruptível, Transcendente e Santo Deus pela corrupção de coisas semelhantes a criaturas. Em outras palavras, amigos, o mais básico pecado que nós, não apenas pagãos em terras longínquas aborígenes ou em tribos primitivas, mas que nós cometemos, é o pecado da troca, a propensão à idolatria. E idolatria envolve religião.

Mas até mesmo a religião cristã pode ser idólatra, quando nós despimos Deus de seus verdadeiros atributos e colocamos no centro de nossa adoração algo que não seja o próprio Deus.

Se formos olhar para a essência da Teologia Reformada, eu tenho que dizer a vocês que o foco mais rigoroso da Teologia Reformada é na teologia! No conhecimento do Deus Verdadeiro.

Nós vivemos numa época em que as pessoas dizem que a teologia não é importante. Era isso que David Wells estava desacreditando em seu livro “Sem Lugar para a Verdade”. O que interessa é se sentir bem. Ser ministrado em nossas necessidades psicológicas. Ter um lugar onde possamos sentir o calor e a comunhão, e ter um senso de pertencer a algum lugar e relevância. E teologia é algo que divide. Algo que atiça controvérsias e debates. Dizem: “Nós não precisamos de doutrina! Precisamos de vida!”

No coração da Teologia Reformada está a afirmação de que teologia é vida. Pois teologia é o conhecimento de Deus. E não há conhecimento mais importante para informar nossas vidas do que o conhecimento de Deus.

É disso que se trata toda a Reforma. Havia escândalos no clero, havia problemas de imoralidade, tanto entre o povo católico romano, quanto entre o povo protestante. E Lutero naquele tempo disse: “Erasmo ataca o Papa em sua barriga, eu o ataquei em sua doutrina.” E Lutero ainda admitia que se encontrava comportamento escandaloso entre nosso próprio povo, mas o que nós estamos tentando fazer em primeiro lugar é chegar a um são entendimento de Deus. Pois nossas vidas nunca serão reformadas, nunca serão trazidas à conformidade com Cristo, antes de termos um claro entendimento da Forma Original, do Modelo, do Ideal, da verdadeira humanidade que é encontrada em Cristo. E isso é uma questão de teologia. Então comecem com o claro reconhecimento de que a fé reformada é uma teologia. Uma teologia que permeia toda a estrutura.

R. C. Sproul

Como o calvinismo explica Deuteronômio 30:19?

“Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 30.19)
A doutrina do livre-arbítrio não conta com nenhuma declaração explícita nas Escrituras. A expressão em si não ocorre na Bíblia e a busca por um sinônimo se revela igualmente vã. No entanto, várias passagens são apresentadas como prova ou evidência de que o homem tem um livre-arbítrio, as quais são mencionadas como desafios à posição calvinista. Em todas elas, porém, o livre arbítrio é presumido ou inferido, jamais expressado. O versículo acima é dos mais utilizados com o propósito de demonstrar que o homem tem um arbítrio livre e vamos analisar se ele apresenta alguma dificuldade ao sistema calvinista.

Onde está o problema?

Antes de mais nada, posto que o verso não traz o termo livre-arbítrio ou um equivalente, quem primeiro tem que explicá-lo são os que enxergam livre-arbítrio nele. Suponho que se aponte para o verbo “escolhe” para provar o livre-arbítrio. Mas escolha e livre-arbítrio não são exatamente a mesma coisa. Se são, podemos ir para casa, pois o calvinista não nega, pelo contrário, defende que o homem faz escolhas, que tais escolhas podem ser livres de coerção externas e que o mesmo é sempre responsável por elas. Para que o texto representasse de fato um problema para o calvinista, o mesmo teria que dizer que o homem é capaz de escolher igualmente entre a bênção e a maldição, entre a morte e a vida, além de sustentar essa escolha em suas implicações textuais. Mas ele diz exatamente o contrário.

O que o texto diz

O livro de Deuteronômio significa “repetição da lei” e é formado basicamente por quatro discursos de Moisés. No primeiro (Dt 1:1-4:43) Moisés relembra a história de rebeldia de Israel, no segundo (Dt 4:44-26:19) ele repassa a história da legislação dada a Israel, no terceiro (Dt 27:1-28:68) promulga solenemente a Lei e, finalmente, no quarto (Dt 29:1-30:20) Deus faz uma nova aliança com o povo. O verso em questão está no final do discurso e trata das consequências da obediência e da desobediência e apela para uma boa escolha por parte do povo. O mesmo deve ser interpretado à luz do contexto deuteronômico.

O que significa escolher a bênção e a vida? Significa cumprir a Lei: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra à qual passas para possuí-la” (Dt 30.15–16). É uma escolha bem diferente levantar a mão no culto, no apelo após a pregação. A questão a ser feita, então, é se os judeus de outrora e os pecadores de hoje são capazes de viver e ser abençoados sob a condição de obediência irrestrita à Lei. A resposta, é um sonoro não. 

Vejamos o histórico do povo de Israel: “rebeldes fostes contra o SENHOR, desde o dia em que vos conheci” (Dt 9.24). O Senhor lamenta “quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos” (Dt 5.29). A verdade é que ninguém tem um coração assim, até que o Senhor lhe dê um, “porém o SENHOR não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até ao dia de hoje” (Dt 29.4). Depende do Senhor o ter um novo coração, o abrir olhos e ouvidos. É verdade que o povo tinha uma escolha diante de si. Mas já não tinha sido capaz de cumprir os mandamentos no passado. E não o era no presente, conforme atesta Moisés, ao se despedir com as palavras “conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se, vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o SENHOR, quanto mais depois da minha morte?” (Dt 31.27). Ele estava ecoando as palavras do próprio Deus, de que no futuro o povo não seria capaz de viver pela Lei: “este povo se levantará, e se prostituirá, indo após deuses estranhos na terra para cujo meio vai, e me deixará, e anulará a aliança que fiz com ele” (Dt 31.16).

O dever de cumprir a lei como condição para a prosperidade na terra forma um paradoxo com a incapacidade do povo de atender aos mandamentos do Senhor. Isso parece injusto às pessoas que presumem que dever implica poder. Mas o objetivo da Lei não é salvar, e sim revelar a natureza má do pecador e servir de testemunha contra ele: “Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao lado da arca da Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha contra ti” (Dt 31.26). A solução divina é a graça do Senhor, manifesta na segunda aliança, quando “o SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas.” (Dt 30.6), o que posteriormente será melhor explicado pelos profetas Jeremias e Ezequiel e revelado completamente no Novo Testamento.

O calvinismo não vê dificuldade nesse texto porque ensina, de acordo com a Bíblia, que a Lei expressa o caráter santo de Deus e que se constitui no padrão de santidade que devemos cumprir. Crê, ainda de acordo com a Bíblia, que nenhum homem foi, é ou será capaz de cumprir de forma perfeita a Lei, e que por conta disso, estamos todos sob maldição. Não vemos a escolha de Dt 30:19 como mera faculdade, e sim como mandamento, ao qual estamos obrigados a despeito de nossa incapacidade. E que a solução para o dilema não se encontra no esforço humano em cumprir a Lei, mas na manifestação da graça por meio de Jesus, que de um lado cumpre a Lei vicariamente por nós, e de outro, nos dá um novo coração, capaz de amar a Deus e viver em santidade para glória dEle, “porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17).

Soli Deo Gloria

Calvinista, graças a Deus

Calvinismo é o nome que popularmente se dá à formulação teológica que se preocupa por enfatizar a glória de Deus e sua soberania sobre os assuntos humanos em toda a sistemática doutrinária. Recebe este nome por causa do reformador francês João Calvino, o primeiro grande sistematizador da teologia cristã protestante. O que muitos ignoram, no entanto, é que Calvino não foi o “inventor” do calvinismo. A doutrina que envolve a soberania de Deus sobre os assuntos humanos, a predestinação do homem para a salvação e, conseqüentemente, para a condenação, a total pecaminosidade do homem não-regenerado que o impede de dar qualquer passo em direção a Deus, a negação do livre-arbítrio como fator soteriológico, tudo isso já era pregado por Lutero e os outros reformadores. Esta doutrina também era ensinada pelos pais primitivos, e muito especialmente nos escritos de Agostinho, bispo de Hipona, depois canonizado pela igreja católica. Enfim, a doutrina calvinista sempre existiu, embora com outros nomes, porque ela é bíblica e encontra suas bases mais sólidas nas sublimes afirmações de Jesus e do apóstolo Paulo.

Tal é a superioridade e o bibliocentrismo da teologia calvinista, que o grande pregador Charles Spurgeon chegou a afirmar que “calvinismo é apenas outro nome para evangelho”. De fato, nenhuma teologia posterior a ela conseguiu superá-la no que diz respeito à fidelidade doutrinária. Não é por casualidade que ela era crida e ensinada por grandes mentes do protestantismo, tais como Jonathan Edwards, Charles Haddon Spurgeon, e por célebres missionários como William Carey e Hudson Taylor. Ao longo dos anos a doutrina calvinista foi questionada, primeiro por James Armínio e seus discípulos, e ainda hoje é atacada por muitos, entre os quais se encontram principalmente os arminianos, os teólogos relacionais e liberais, mas jamais houve um momento da história eclesiástica esta doutrina deixou de ser crida e pregada.

Ainda me lembro do primeiro debate que tive com um calvinista. Naquela época eu tinha recém saído de um seminário pentecostal, onde havia sido bem instruído no arminianismo. Lá tinham me ensinado (sutilmente) que o calvinismo é uma grave heresia e uma desculpa para viver uma vida sem santidade ou temor. Lembro daqueles acalorados debates, dos quais eu sempre saia cheio de dúvidas (Dúvidas que pouco a pouco foram se convertendo em certezas opostas àquelas que eu tinha sustentado naqueles primeiros anos). Jamais me esquecerei do dia em que este amigo e debatedor me emprestou um exemplar em espanhol da “Carta de João Calvino ao Rei da França: Instituição da Igreja Cristã” . Que experiência maravilhosa ler aquele livro! Somente um livro despertou em mim mais prazer e curiosidade que aquele; a Bíblia Sagrada, no qual aquele volume estava respaldado.

Após isso voltei ao Brasil. Na viagem, eu lutava contra aquela “nova crença” que estava querendo brotar no meu coração. Ao chegar, me matriculei no curso de mestrado em teologia (livre). Para obter o título, escrevi uma tese de 200 páginas sobre aquilo que os filósofos chamam de “o problema do mal”. Em resumo, a tese se baseava no livre-arbítrio do homem, e era uma negação disfarçada do calvinismo, a grave heresia da qual me apaixonei na minha primeira estadia no país dos Incas. O problema é que quanto mais eu buscava pelo livre arbítrio, mas eu encontrava o designo de Deus. Terminei a dissertação, me graduei, mas o coração estava apertado, pois era a primeira vez que eu defendia uma crença incompatível com as minhas convicções.

Foi então que me falaram de um livro fantástico: “Eleitos, mas Livres”, do renomado apologista cristão Norman Geisler. Aparentemente, era tudo o que eu precisava naquele momento: Um argumento que conciliasse a liberdade humana absoluta e a eleição de Deus, cujo proponente era um dos maiores apologetas da atualidade. Mas a leitura deste livro foi um placebo, e seu efeito durou apenas alguns meses. Nessa época eu ensinava teologia sistemática no seminário da minha igreja, e pela primeira vez ensinei o calvinismo e o arminianismo ao mesmo tempo, incluindo no final da exposição aquilo que eu chamava de “cosmovisao conciliadora”. Que fiasco! Mais fácil me teria sido conciliar água e óleo.

Durante a leitura de “Eleitos, mas livres”, tive grande curiosidade de conhecer mais sobre o R.C. Sproul e o tal livro “Eleitos de Deus”, o qual Norman Geisler aparentemente refutava. Na verdade, a leitura daquele livro se impunha como uma questão de justiça: Eu precisava dar uma oportunidade também ao R.C. e o seu livro antes de tirar minhas conclusões. Até então, tudo o que eu tinha deste autor era um pequeno livro chamado “Filosofia para Iniciantes”, que ocupava um lugar secundário na minha parca biblioteca. Pois bem; bastou iniciar a leitura para o meu pesadelo recomeçar, porém agora o efeito que esta crença teria sobre mim seria decisivo. Acabei a leitura perplexo do “biblismo” do autor, o qual diferente de Norman Geisler, não apelava todo tempo para silogismos da razão humana, mas sempre recorria ao texto bíblico para elucidar suas questões. Ao terminar a leitura, eu estava “quase calvinista”.

Neste ponto, decidi trilhar meu próprio caminho. Separei um tempo para estudar sistematicamente a carta de Paulo aos Romanos, o maior tratado soteriológico já escrito. Decidi esvaziar ao máximo dos meus pressupostos, a fim de encarar o texto bíblico e as implicações a que ele me levasse. Em oração, passeei pelos primeiros capítulos e fiquei assombrado diante da total incapacidade humana. A frase “não há quem busque a Deus” ficou ecoando no meu coração durante muitos dias. Ali eu me vi morto em pecado, incapaz de buscar ao meu Senhor por mim mesmo, ou pelo meu livre arbítrio. Que terrível destruição causou o pecado! Os capítulos seguintes me conscientizaram da oferta gratuita de Deus, a salvação, a qual – agora eu entendia – era um bem eterno e irrevogável. Segui em meu estudo por alguns dias, e encontrei finalmente a visão da soberania de Deus, tanto sobre o destino das nações, quanto sobre os indivíduos. Um oleiro que tem absoluto poder sobre os vasos, inclusive para fazer uns para honra e exercer sobre eles misericórdia justa (estribada na justiça de Cristo); como para fazer outros para desonra e ira, e demonstrar sobre eles sua justiça penalizadora (estribada na sua santidade). Finalmente, entendi que “não depende de quem corre, mas de Deus que tem misericórdia”.

Após esta leitura fiz uma busca por toda bíblia, a qual sempre me dirigia a esta mesma verdade: A de que o homem nada pode fazer pela sua salvação, de que Deus os chama como um ato soberano e glorioso e de que o “livre-arbítrio” está dominado por uma perversa natureza que é incapaz de exercer impulso soteriológico positivo. Permanece, no entanto, alguns questionamentos de outrora. Na verdade, depois de algum tempo me dei conta de que algumas questões realmente não possuem explicação lógica. Entendi que o paradoxo é essencial ao cristianismo, uma vez que o cristianismo é um ato de fé. Mas não busco justificar a Deus por punir o pecado com um inferno eterno, tal como muitos pretensos apologistas fazem. Apenas repito ao meu coração que as ações de Deus são justas (como de fato, são) e toco o meu barco. Reconheço que o calvinismo, à principio, é uma doutrina amarga, principalmente para aqueles que foram instruídos no “melhor” do arminianismo e do pentecostalismo. No entanto, não me convém modificar uma doutrina bíblica apenas pelo sabor que ela proporciona ao meu paladar. Nem os meus gostos, nem meus preconceitos ou mesmo a minha justiça humana pode definir uma doutrina bíblica. “À lei e ao testemunho!”. Sola Scriptura!

Reconheço que meu calvinismo carece de mais robustez. No entanto, o conhecimento que hoje tenho dele não traz mais nenhum sabor amargo. Graças ao “calvinismo” (leia-se: sistematização do evangelho de Jesus), pude finalmente descansar na graça de Deus. Não fiquei mais pecador por isso. Não evangelizo menos depois que entendi que a salvação está ligada a uma eleição feita na eternidade. Não oro menos depois que descobri que “estou salvo para sempre”. Antes, a segurança da salvação me faz imensamente grato, e é esta gratidão e amor que me oferecem combustível para uma vida de temor e piedade. Desde que atribuí toda a glória a Deus por minha salvação, não confiando mais na “obra do meu arbítrio”, passei a ser mais humilde, pois entendi que tudo, absolutamente tudo de bom, é um presente de Deus.

Entendo que Deus tem interesse que seus filhos conheçam a verdade sobre a sua salvação, e que por isso ele mesmo me guiou neste processo. E cada vez que alguém questiona: “Você é calvinista?”, respondo com alegria: “Sou calvinista, GRAÇAS A DEUS”. Sim, graças a Deus!

Soli Deo Gloria.

Leonardo Gonçalves
Piura, Verão de 2011

Carta a um irmão inquieto - 4

Querido Rick,

Espero que continue firme em sua fé em Cristo e que sua preocupação com minha saúde espiritual tenha diminuído, depois das explicações que lhe dei sobre o que eu creio a respeito da predestinação. Na minha primeira carta, disse que o calvinismo não era uma seita, mas uma posição amplamente assumida na história da igreja. De fato, penso ter demonstrado que a Bíblia ensina uma doutrina da predestinação e que rejeitar a predestinação implica rejeitar o ensino bíblico. Na segunda carta, expliquei que predestinação não pode significar algo posterior ao ato de crer, baseando-me no significado bíblico do termo e nas construções frasais em que o mesmo ocorre. E na minha última carta, respondi às suas objeções de que a doutrina da predestinação torna Deus injusto por fazer acepção de pessoas e que tornaria vãs a morte de Jesus e a pregação do evangelho. Você não disse o que achou das minhas respostas, mas penso que as considerou, pois em sua última e breve resposta disse que o homem tem livre-arbítrio, que não é um robô e que tem direito de escolha.

Pelo que entendi de seu raciocínio, se Deus predestinou pessoas para a salvação, então o homem não teria livre-arbítrio e não tendo livre-arbítrio não seria mais que um robô, que age mecanicamente sem fazer escolhas pessoais. Gostaria de repensar com você essas afirmações. Porém, não estou bem certo do que você entende por livre-arbítrio, parece-me que é algo como “direito de escolher por si mesmo”, levando em conta a analogia do robô que não faz escolhas pessoais. Minha resposta é para essa ideia de livre-arbítrio.

Em primeiro lugar, peço que note que estamos mudando o foco da nossa conversa, saindo do tema “o que Deus faz” para “o que o homem tem”, embora continuemos falando da salvação. É a ordem certa das coisas, porém a sua mudança de foco não é do tipo “tendo considerado como Deus é e age, vejamos suas implicações no que o homem é e faz”, mas “se o homem é assim, então Deus não pode ser e agir dessa forma”. Você ainda está resistindo à ideia de um Deus que predestina e O está medindo com régua humana e, acredite-me, isso é não só impossível como tentar é perigoso e pecaminoso. Devemos, antes de tudo, entender e aceitar o que a Bíblia diz sobre a pessoa e a obra de Deus e só então voltar o nossos olhos para o homem, estudando-o sob a luz que temos do Senhor.

Segundo, a simples predestinação de pessoas para a salvação não exige necessariamente a inexistância de livre-arbítrio. Bastaria, por exemplo, que Deus predestinasse para a salvação aquelas pessoas que Ele, olhando da eternidade, viu que fariam bom uso de seu livre-arbítrio. De fato, há pessoas que creem na predestinação dessa forma. Eu pessoalmente rejeito essa saída, mas ela serve para mostrar que crer na predestinação para a salvação não contradiz o livre-arbítrio, desde que aquela seja modificada de soberana e graciosa para condicional e dependente de uma ação prevista do homem.

Por outro lado, e em terceiro lugar, ser o livre-arbítrio possível não implica que o homem o tenha. Ao contrário da predestinação, que você reluta em admitir, o livre-arbítrio não é declarado na Escritura. Isto não basta para negar sua existência, mas deveria esfriar o fervor com que muitos o defendem. E admitindo-se que Deus tenha criado o homem com livre-arbítrio, ele passou incólume pela Queda? Dizer que o homem natural, caído, tem livre-arbítrio, tal como tinha no Éden é diminuir, senão negar completamente, o efeito devastador do pecado na natureza humana. É aceitável dizer que o homem tem arbítrio, mas devemos aceitar que tal arbítrio não é livre, mas cativo, pois aquele que é vencido torna-se escravo do vencedor. A Bíblia descreve o homem como escravo, escravidão que inclui a sua vontade.

Em quarto lugar, não ter um arbítrio livre não faz do homem um robô de carne. Um cão não tem livre-arbítrio, age por instinto. Mesmo assim, a diferença entre um cão e uma máquina é, em todos os aspectos, assombrosa. Não ter livre-arbítrio não transforma um cão numa máquina. E há outro abismo igualmente enorme entre um cão e um homem. Por que então o fato de ter um arbítrio escravizado tornaria o homem menos que um cão? A afirmação de que sem livre-arbítrio o homem um robô é infantilmente tola. O que distingue e coloca o homem acima de todos os seres e coisas criadas na terra não é o livre-arbítrio, mas a imagem de Deus que ele carrega.

Em quinto e último lugar, quando digo que o homem não tem um arbítrio livre, não quero dizer que ele não faz escolhas. Faz, e o faz de forma livre, no sentido de que escolhe sem coerção externa. Porém, considerada a sua natureza caída e sua inclinação para o pecado, não tem tem capacidade, por si só, de realizar boas escolhas espirituais, como a de crer e ir a Cristo. Em suma, não nego que o homem natural realize escolhas, mas afirmo que entregue a si mesmo ele sempre escolhe o pecado e nunca o que é aceitável a Deus.

Concluindo, o livre-arbítrio não é uma prova de que a predestinação bíblica não existe, pelo contrário, a existência do livre-arbítrio é que carece de prova escriturística. Além disso, não ter um arbítrio livre não transforma o homem em robô, pois o que o distingue como homem é a imagem de Deus e ele de fato continua fazendo escolhas, mas no que se refere ao bem espiritual é incapaz de boas escolhas.

Soli Deo Gloria

Pentecostalismo e Calvinismo: alguma relação possível? - Final

Esta é a parte final do artigo que avalia a compatibilidade entre o pentecostalismo e o calvinismo. Recomendo que você leia as primeira e a segunda partes para melhor compreensão do tema.

A conciliação é possível

Uma constatação imediata da análise dos pontos distintivos dos dois sistemas teológicos é que pertencem à áreas distintas do conhecimento teológico. O cinco pontos do calvinismo são afirmações soteriológicas, enquanto que os dois pontos distintivos do pentecostalismo dizem respeito à pneumatologia. Óbvio que não são áreas estanques ou que um cristão possa manter sua convicções departamentalizadas. O calvinismo atribui um papel fundamental ao Espírito Santo na adoração, enquanto que o pentecostal mantém que a função principal do Espírito Santo é glorificar a Cristo, por quem somos salvos e por meio de quem recebemos o próprio Espírito Santo. Assim, sendo disciplinas distintas dentro de uma teologia sistematizada, não há conflito direto, mas estando inter-relacionadas, um exame sobre eventual incompatibilidade se faz necessário.

O maior potencial para conflito está no entendimento do que seja o Batismo com o Espírito Santo. Já houve quem pensasse que o mesmo se referia ao batismo realizado na igreja local sob direção do Espírito Santo ou que no batismo Deus infunde o Espírito Santo no batizando (RYRIE, 2003). Porém, o mais comum entre os não pentecostais é que o Batismo com o Espírito Santo seja entendido como parte da experiência de conversão-iniciação no Corpo de Cristo, quando não a mesma coisa. Os pentecostais por sua vez mantém a subsequência do Batismo com o Espírito Santo em relação à conversão. Mas será que esta diferença é tal que incompatibiliza uma convicção calvinista-pentecostal coerente?

Que o Batismo com o Espírito Santo é distinto do ato de regeneração e da experiência de conversão parece ser ponto comum, com exceção de poucos que dizem ser a mesmíssima coisa. O ponto em debate é a separalidade ou a subsequência. Mas mesmo neste caso, há suficiente testemunho de que os reformados nem sempre discordam dos pentecostais. R. A. Torrey ensinou que uma pessoa pode ou não ser batizada no momento da regeneração e refere-se ao batismo com o Espírito Santo de D. L. Moody como tendo ocorrido depois de sua conversão (RYRIE, 2003). Martyn Lloyd-Jones também se referiu ao Batismo com o Espírito Santo como uma experiência distinguível da regeneração e da conversão. Para ele, sempre que o Novo Testamento falava de crentes sendo cheios do Espírito Santo tratava-se de Batismo com o Espírito Santo, exceto Ef 5:18 (LARSEN, 2003). 

Os pentecostais, por sua vez, com sua ênfase na separalidade, de forma alguma desvalorizam a obra do Espírito Santo no novo nascimento. Para eles, tanto o pregar o evangelho, como o responder a ele, é uma obra do Espírito Santo. Nas palavras de FEE (1997), “fica claro disto tudo que a conversão do crente individual começa com um ato soberano de Deus, executado pelo Espírito Santo... a ação de Deus é claramente a anterior”. Para ele, “o Espírito parece tanto o que inicia a nossa fé como o que é recebido por essa mesma fé”. Quanto ao Batismo no Espírito Santo como iniciação-inclusão no corpo de Cristo, este é o entendimento de muitos pentecostais com relação a 1Co 12:13, entre eles R. M. Riggs, E. S. Williams, Donald Gee, P. C. Nelson e Myer Pearlman (HORTON, 1993). Portanto, as diferenças entre calvinistas e pentecostais quanto ao Batismo com o Espírito Santo em si não são tão evidentes, nem irreconciliáveis, especialmente à luz da herança comum das duas tradições.

Além disso, tanto calvinistas como pentecostais tem em comum o que Alister McGrath lista como características das igrejas evangélicas: suprema autoridade das Escrituras, majestade de Jesus Cristo, senhorio do Espírito Santo, necessidade de conversão pessoal, prioridade da evangelização e importância da comunidade cristã (BANISTER, 2001). Além disso, reinvidicam para si o fato de terem os mesmos antepassados. Os pietistas, que se reuniam nos domingos à tarde para estudar a Bíblia relatam que em seus dias foram batizados com o Espírito Santo. Os puritanos, calvinistas que eram estudantes metódicos da Palavra de Deus, incentivavam uns aos outros a buscarem uma outra experiência com o Espírito Santo, distinta da conversão, à qual chamavam de selo do Espírito. Os mestres de Keswick, entre os quais listam-se Hudson Taylor, Andrew Murray, F. B. Mayer, G. Campbell Morgan e D. L. Moody também se referiram a uma experiência mais abundante com o Espírito Santo, posterior à conversão. Todos eles podem, e geralmente são, considerados como antepassados tanto de tradicionais como de pentecostais (BANISTER, 2001).

Experiências recentes tem demonstrado que uma pessoa ou igreja pode, de forma coerente, manter convicções calvinistas e pentecostais. Existem seminários tradicionais dirigidos por teólogos pentecostais, ou por tradicionais e pentecostais em harmonia. Escolas pentecostais tem em seus quadros de professores calvinistas convictos. É cada vez maior o número de alunos pentecostais em seminários tidos como tradicionais (BANISTER, 2001). Um dos pontos do movimento chamado novo calvinismo é exatamente o ministério cheio do Espírito Santo, ou seja, a crença na atualidade dos dons espirituais (NIEL, 2011).

A associação é proveitosa

Porém, a associação entre calvinismo e pentecostalismo não é apenas possível, mas grandemente útil. Até mesmo obras críticas ao pentecostalismo reconhecem que há benefícios a serem desfrutados. Como exemplo, CHANTRY (1990) cita o interesse revivido no Espírito Santo, uma vez que a igreja tradicional tem menosprezado o ensinamento sobre o Espírto Santo. Depois de reconhecer que nem todas as igrejas pentecostais tem sido débeis na doutrina, MACLEOD (2005), diz ser possível  aprender muito com os pentecostais em termos de zelo, mobilização de todo o corpo de crentes e anelo pelo ministério do Espírito Santo. De outro lado, os pentecostais estão procurando chegar a um acordo com sua herança evangélica tradicional (MENZIES, 2002). Muitos reconhecem que falando de modo geral, deram mais ênfase à experiência que à teologia, o que os manteve afastados da ética e dos postulados doutrinários da Reforma Protestante (NAÑEZ, 2007). Uma relação com calvinistas resultará proveitosa em desenvolver uma maior robustez teológica.

BANISTER (2001) insiste que não precisamos escolher entre o legado tradicional e o renovado quando podemos aproveitar o que há de melhor nos dois mundos. Os pentecostais só tem a ganhar com pregações expositivas, maior ênfase na autoridade e suficiência das Escrituras, de uma visão mais bíblica do sofrimento e que o Reino de Deus ainda não está completo aqui. Os tradicionais ganhariam com uma maior ênfase no poder do Espírito, na crença que Deus fala ainda hoje, no culto participativo e de que o Espírito Santo deve ser experimentado. Uma mente calvinista e pentecostal não é uma mente dividida, mas uma mente que de forma consistente reconhece a soberania de Deus na salvação e na capacitação para o serviço.

Soli Deo Gloria