O Espírito Santo tem ciúmes?

Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Tg 4:5 (ACF2007)

Esta é uma passagem que apresenta considerável dificuldades de compreensão, se examinada mais atentamente e à luz de seu contexto. A questão que se levanta é se espírito se refere ao Espírito Santo, ao espírito humano ou a um espírito maligno. O que dá espaço à polêmica é a conotação negativa do termo ciúme, agravada pelo fato da passagem citada por Tiago não ser encontrada no Antigo Testamento na forma em que é expressa.

A dificuldade é evidenciada pela variedade de formas com que “προς φθονον επιποθει το πνευμα ο κατωκησεν εν ημιν” (literalmente “com ciúme anseia o espírito que fez habitar em nós”), é traduzido. A Almeida Revista Corrigida diz “o Espírito que em nós habita tem ciúmes”, a Tradução Brasileira “com zelos anela por nós o Espírito que ele fez habitar em nós”, a Almeida Revista traduz “o Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme”, a Almeida Revista e Atualizada “é com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós” e a NVI traz “o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes”. A Bíblia de Jerusalém apresenta “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?” e a Almeida Revista e Corrigida Anotada traz a seguinte alternativa: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Traduções em linguagens mais modernas também apresentam várias possibilidades. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje diz “o espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”, a Bíblia Viva traduz “o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com terno ciúme” e a Versão Fácil de Ler “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Como se vê, pela simples comparação de traduções e versões fica difícil chegar a um consenso. É difícil até mesmo concluir se se trata de uma afirmação (“o espírito tem ciúmes”) ou uma pergunta (“o espírito tem ciúmes?”).

A palavra ciúme

Qual é o significado real do termo traduzido como ciúme? Ele deve ser tomado num sentido bom ou mau? No grego secular o termo phtoneo significa inveja “que faz com que alguém tenha ressentimento contra outra pessoa por ter algo que ele mesmo deseja, sem porém, possuí-lo” (DITNT). Embora pareça ser sinônimo de zelos, “ciúme”, os escritores clássicos distinguem um do outro. Enquanto zelos é “o desejo de ter aquilo que outro homem possui, sem necessariamente ter ressentimento contra aquele que o possui”, pthonos “se ocupa mais em privar o outro da coisa desejada do que em obtê-la”.

No Novo Testamento, a forma verbal ocorre apenas uma vez, enquanto que o substantivo aparece nove vezes. Em Gl 5:26 “invejando-nos uns aos outros” contrasta com “viver no Espírito” (Gl 5:25). Nas epístolas aparece em várias listas de qualidades más. Em Gl 5:21 é uma “obra da carne”, em Rm 1:29 é uma característica daqueles a quem Deus entregou a um “sentimento perverso”, e em Tt 3:3 dos inconversos. Em 1Pe 2:1 é algo que os crentes devem deixar para trás, 1Tm 6:4 diz que nasce de questões e contendas de palavras motivadas pela soberba. Os evangelhos (Mt 27:18; Mc 15:10) nos informam usando esse termo que foi por inveja que os líderes religiosos entregaram Jesus a Pôncio Pilatos. Em Fl 1:15 o termo é contrastado com “boa vontade”.

O que se pode concluir do uso bíblico de phthonos é que refere-se a um “sentimento de desgosto produzido por testemunhar ou ouvir falar da vantagem ou prosperidade de alguém” (Vine). E devido a esse sentido sempre negativo, jamais é utilizado em referência a Deus ou ao Espírito Santo, e se em Tg 4:5 o sujeito é Deus ou o Espírito Santo, trata-se de uma excepcionalidade e tanto.

O texto citado por Tiago

É impossível identificar com certeza qual passagem Tiago tinha em mente. Alguns acreditam que que ele não se referia a nenhuma passagem específica, mas fazia um resumo do ensino do Antigo Testamento. Porém a fórmula de introdução que usa, “a escritura diz” parece requerer uma citação direta. Vejamos algumas das possíveis passagens, sem pretender esgotar as alternativas.

Algumas passagens dizem que Deus é zeloso. Êxodo 20:5 diz que “eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso” e noutra parte “o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso” (Ex 34:14). Esse zelo divino é primeiramente voltado para a Sua glória, mas também por aqueles que lhe pertencem: “Zelei por Sião com grande zelo, e com grande indignação zelei por ela” (Zc 8:2). Esse zelo faz de Deus um fogo consumidor “o SENHOR teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Dt 4:24). Porém uma informação deve ser dada aqui. O termo hebraico usado nessas passagens, e em outras correlatas, quando citadas no Novo Testamento ou traduzidas na Septuaginta, é sempre zelos e nunca phthonos.

Uma passagem contraposta a essas é Gn 4:7: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. O que dizem que essa é a passagem que Tiago tinha em mente advogam que ciúme não tem a ver com o zelo divino, e sim com desejos pecaminosos dos homens. Nesse caso, espírito é usado em contraposição ao Espírito Santo. “Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam” (Gl 5:17). Outras passagens poderiam ser sugeridas (Gn 6:3; Is 63:8–16; Ez 36:17; Zc 1:14; 8:2-3), mas infelizmente não ajudam a elucidar a questão.

O sujeito da oração

Tendo levantado as questões anteriores, podemos nos voltar para a discussão da identidade do espírito. Faremos isso considerando quem é o sujeito na oração. As possibilidades são Deus, o Espírito Santo, o espírito do homem e o espírito maligno.

Até onde pude constar a única tradução que se aproxima (a conclusão é questão de interpretação) de um espírito maligno aqui é o Novo Testamento Judaico: “Ou vocês supõem que a Escritura fala em vão ao dizer que há um espírito em nós que deseja intensamente?”. Yiechiel Lichstenstein, citado no Comentário Judaico do Novo Testamento, diz “Em minha opinião, o espírito aqui se refere não a Deus, mas a Satanás”. Ele busca apoio no verso 7, que diz “resisti ao Diabo e ele fugirá de vós” e recorre a Gn 4:7 afirmando que “o espírito maligno é o impulso maligno em nós”, apoiando essa interpretação de Gênesis no Tamulde (Bava Batra 16a): “Ele é Satanás, o impulso maligno”.

Algumas traduções colocam Deus como sujeito e o Espírito (Santo ou humano) como o objeto do ciúme. Um exemplo é a Bíblia de Jerusalém: “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?”, seguida pela Fácil de Ler: “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Uma vez aceita essa tradução, resta saber a identidade do Espírito. Algumas versões trazem a expressão “que ele fez habitar em nós” (vamos passar ao largo da discussão sobre os manuscritos usados nas traduções). É uma expressão comum para se referir ao Espírito Santo e inédita em referência ao espírito humano. Nesse caso, é mais provável que espírito seja uma referência ao Espírito Santo.

Parece-me que a maioria das traduções colocam o Espírito Santo como sujeito. A Almeida Revista e Atualizada representam bem esse grupo de traduções e versões: “É com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós”. Porém, nem todas afirmam positivamente que o Espírito tem ciúmes, mas colocam a questão na forma interrogativa, que alguns entendem ser uma pergunta retórica, que pede um não como resposta, como sugere a nota da Almeida Revista e Corrigida Anotada: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Finalmente, há a possibilidade de que espírito se refira ao espírito humano. A NTLH parece indicar isso: “O espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”. Apesar de grafar Espírito, com maiúscula, a Almeida Revista e Atualizada, também pode ser entendida assim. “O Espírito que em nós habita tem ciúmes”. E se “que fez habitar em nós” for admitido como possível para o espírito humano, outras traduções podem ser consideradas como apresentando o espírito humano como aquele que tem ciúmes.

Minha posição

Pela complexidade da passagem, qualquer posição deve ser considerada provisória e sujeita a revisão. Portanto, não pretendo ser dogmático. Mas considerando que ciúme/inveja é tomado sempre num mau sentido na Bíblia e jamais utilizado tendo Deus ou o Espírito Santo como sujeitos, acho muito improvável que a divindade seja representada como tendo ciúmes (lembrando que zelo é uma tradução sui generis aqui). Além disso, o verso seguinte estabelece um contraste, dizendo “Antes, dá maior graça” (Tg 4:6). Portanto, creio que como em todo o Novo Testamento, aqui também ciúme tenha uma conotação má, incompatível com o caráter de Deus. Portanto, vejo duas possibilidades: ou a sentença é interrogativa e retórica (“o Espírito tem ciúme? Não”) ou o espírito referido é o humano, tomado de paixões carnais. Das duas, fico com a primeira, mas considero a segunda também consistente com o contexto e com o restante da Bíblia.

Soli Deo Gloria

14 comentários:

  1. Querido Irmão Clóvis:
    Aumentando a lenha da fogueira acrescento às traduções citadas, o texto da Bíblia Sagrada, Edição Barsa 1968, traduzida pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo com notas do Monsenhor José Alberto L. de Castro Pinto, com a devida aprovação do Cardeal D.Jaime de Barros Câmara arcebispo do Rio de Janeiro. (1968).
    Tiago 4.5: "Acaso imaginais vós que em vão diz a Escritura: Que o espírito que habita em vós vos ama com ciúme?".
    Nota do Rodapé: Ex 20,3 a 6. "Não terás deuses estrangeiros diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem figura de tudo que há em cima no céu, e do que há embaixo na terra, nem de coisa, que haja nas águas embaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes dará culto, porque eu sou o senhor teu Deus, o Deus forte, e, zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles, que me aborrecem; e que faz misericórdia até mil gerações àqueles que me amam, e que guardam os meus preceitos".
    O que entendi após ler o contexto de Tiago e o de Êxodo: "SERÁ QUE VOCÊS SÃO CAPAZES DE PENSAR QUE A AMIZADE AO MUNDO É INIMIGA DE DEUS, PORQUE ELE VOS AMA DE FORMA CIUMENTA? SE PENSAM DESSA FORMA ESTÃO MUITO ENGANADOS, PORQUE A ESCRITURA DIZ QUE: ELE VOS AMA PORQUE É FORTE, ZELOSO E SENHOR DE TODAS AS COISAS. PORQUE ELE VEIO NÃO PARA OS DISPUTAR COM OUTROS DEUSES, MAS PARA VOS PROVAR, E PARA QUE O SEU TEMOR ESTEJA DIANTE DE VÓS, A FIM DE QUE NÃO PEQUEIS".
    Abraços.
    Fabio, cristaodebereia.blogspot.com

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  2. Clóvis,

    Uau !

    Grato por comentar a respeito deste questionamento que lhe fiz em outra oportunidade, pois podemos as vezes ler sem parar para pensar equando é analisado como você assim fez, vemos que realmente temos posições provisórias.

    Não tenho conhecimento de grego, hebraico, então a forma que é colocada na Bíblia influencia todo um pensamento (por exemplo espírito com inicial maiúscula ou minúscula)

    Fico com a posição de ser uma pergunta, com um resposta negativa. Porém se levado em conta ser o espírito humano ao invés de Divino em forma afirmativa também tem certo sentido.

    Grato pela presteza com que trata os frequentadores do blog.

    Em Cristo

    Márcio

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  3. É muito claro este texto e o contexto chama as pessoas de adúlteros e adúlteras, mostrando que não tem como ser amigo de Deus e do mundo ao mesmo tempo ou seja logo Deus tem ciúmes quando não observamos este detalhe e queremos ser dele e também do mundo, a palavra é muito simples, nós quanto mais estudamos mais queremos complicar, as escrituras se refere a todo ensino bíblico que sempre defendeu um povo separado para Deus e não um povo igual ao mundo.

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    1. Se o texto é "muito claro" porque há tantas diferenças nas traduções e porque os comentaristas não entram num acordo sobre ele?

      Em Cristo,

      Clóvis

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    2. concordo com você David

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    3. verdade. nao e claro, alias´ tem muitas coisas nas escrituras que nao sao claras. abraços.. a paz de Cristo.

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  4. O FATO É QUE TODAS LEVAM A UM SÓ SENTIDO; Deus nos ama e nos deseja.

    Parabéns pela postagem.

    dá uma olhada depois ae: http://umreinoeterno.blogspot.com.br/

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  5. pra mim também esta muito claro, o ciume citado por (Thiago) só mostra todo o contexto do relacionamento de Deus com seu povo ( a Igreja).
    o amor de Deus, e muitas vezes o desprezo de seu povo por ele.
    Foi assim no antigo Testamento e é assim na Nova Aliança.

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  6. J.Marcos.

    Se eu não tiver ciúme do que é meu, é um forte indício de que eu não o amo.
    Claro que ciúme aqui é um cuidado e não uma loucura.

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  7. Esta escrito em Tiago 3:16 Porque onde há ciúme e sentimento faccioso,aí há confusão e toda obra má.
    ◘Achei controverso em relação ao que está escrito em Tiago 4:5 Ou pensais que em vão diz a escritura:O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme?
    Ai faço a pergunta:
    Como pode o Espirito ter ciúmes,se onde há ciúmes há confusão?(No caso esta referindo se ao Espirito Santo,pois iniciou com letra maiúscula)

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  8. Shirlei,

    Obrigado pelo seu comentário. Como eu disse na parte final do artigo, não me atrevo a fincar pé numa posição, dada a complexidade da questão.

    Quanto à referência ser ao Espírito Santo devido a letra inicial ser maiúscula, o argumento perde força quando consideramos que no original o termo não é grafado com inicial maiúscula, mas isso não decide o caso para o outro lado, pois os originais ou são unciais ou cursivos.

    Em Cristo,

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  9. claro que o espirito santo não tem ciumes esse versiculo é uma perguta que logo ele responde no versiculo seguinte

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  10. O ciúme de Deus é baseado no amor e preocupação por nós.
    Em 2 Coríntios 11.2 Paulo fala que tem o mesmo zelo que Deus tem por seu povo e compara com a ligação fiel que deve ter o esposo e a esposa. O ciúme é usado nas Escrituras, tanto um positivo e um sentido negativo. Quando o ciúme é usado como um atributo de Deus, ele é, obviamente, usado em um sentido positivo.Romanos 11:14 diz : na esperança de que de alguma forma possa provocar ciúme em meu próprio povo e salvar alguns deles...Vejo nessa passagem sentido positivo,edificante.Mesmo no castigo de Israel indo ao cativeiro babilônico Deus estava por eles zelando ,o que resultou em fidelidade quanto ao deixarem a prática da idolatria.
    Esta lição,até hoje serve na prática diária de muitos de Israel e mesmo não aceitando o messianismo de Jesus Cristo,permanecessem na Lei de Moisés como Deus mesmo havia falado :
    Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, que lhe mandei em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos.
    Malaquias 4:4.

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  11. O ciúme de Deus é baseado no amor e preocupação por nós.
    Em 2 Coríntios 11.2 Paulo fala que tem o mesmo zelo que Deus tem por seu povo e compara com a ligação fiel que deve ter o esposo e a esposa. O ciúme é usado nas Escrituras, tanto um positivo e um sentido negativo. Quando o ciúme é usado como um atributo de Deus, ele é, obviamente, usado em um sentido positivo.Romanos 11:14 diz : na esperança de que de alguma forma possa provocar ciúme em meu próprio povo e salvar alguns deles...Vejo nessa passagem sentido positivo,edificante.Mesmo no castigo de Israel indo ao cativeiro babilônico Deus estava por eles zelando ,o que resultou em fidelidade quanto ao deixarem a prática da idolatria.
    Esta lição,até hoje serve na prática diária de muitos de Israel e mesmo não aceitando o messianismo de Jesus Cristo,permanecessem na Lei de Moisés como Deus mesmo havia falado :
    Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, que lhe mandei em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos.
    Malaquias 4:4.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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