A eleição incondicional torna Deus mentiroso?

Nas disputas teológicas, muitas vezes a vítima é o texto bíblico, que é espremido e usado para dizer o que não diz e oferecer pretextos a conclusões que lhe são totalmente alheias. É o caso do artigo intitulado "Na Doutrina da eleição Incondicional Seria Deus Verdadeiro?", em que João 3.31-33 é usado na tentativa de provar que se a eleição incondicional é verdadeira, Deus não é.

O artigo em si poderia ser melhor escrito, menos confuso e com uma correção dos erros de português (gramática e concordância), embora se proponha a uma análise do grego da passagem. E como não poderia faltar em artigos desse nível, os espantalhos do calvinismo estão presentes. Por exemplo, no calvinismo "a oferta do evangelho não é universal, Deus não deseja que os ouvintes (todos) sejam salvos, a pregação do evangelho não é para todos os perdidos e não existe boa vontade em Deus". Dessa forma, seria esperar demais que a doutrina da eleição incondicional fosse corretamente explicada, antes de ser combatida.

O texto bíblico em questão diz o seguinte:

“Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro.” (João 3.31–33)

As citações no artigo são das NVI, Jerusalém, NTLH, além do Textus Receptus, o que não vem ao caso, pois a tradução correta do texto não está em dúvida e a variante textual no versículo 32 é irrelevante para a discussão. O versículo que o autor analisa para levar à sua conclusão é o 33: "Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro".

É de se perguntar, de imediato, o que essa passagem ou esse texto tem a ver com a condicionalidade da eleição. Aparentemente, o autor já esperava por esse estranhamento, uma vez que reconhece que trata-se de uma luz "muito pouca percebível (sic) tanto por calvinistas, como por Arminianos". Talvez não se tenha percebido porque, nesse sentido, nada havia ali para perceber.

Depois de citar várias passagens que declaram que Deus é verdadeiro (Dt 32.4; Sl 31.5; 146.6; Is 65.16; Jr 10.10; Jo 7.28; Jo 8.26; Jo 17.3; Rm 3.4), o autor declara "o que me chamou a atenção é que se Deus é verdadeiro e creio que Ele o é, e o texto diz que Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro, comparando essa verdade com a doutrina da eleição incondicional, percebemos. (sic) Que essa doutrina com a afirmativa desse texto, é incompatível, e os motivos apresentaremos na sequência". A esperança aqui é que a falta de clareza na formulação da tese fosse compensada com uma apresentação clara dos motivos que levaram o autor à associação da eleição incondicional com a veracidade de Deus.

Mas a continuação da leitura frustra o leitor. Os motivos que ele então apresenta é que aquele que crê em Cristo e em seu testemunho confirma que Deus é verdadeiro e aquele que não crê, infama Deus como mentiroso. Não deve haver discordância quanto a isso. Mas dessa conclusão ele extrai outra: "portanto, diante dessa verdade, a mensagem Calvinista de uma dupla predestinação não pode ser verdadeira, uma vez que Deus já fez a sua escolha tanto para a salvação como para a perdição, e esse texto não trata com a possibilidade restritiva, o texto é aplicável a todas as pessoas e cada um dos indivíduos e não classes de pessoas". Ora, um eleito que aceita o testemunho de Cristo declara que Deus é verdadeiro, não importa se foi eleito incondicionalmente ou pela fé prevista. Não temos, até aqui, nenhum dos motivos prometidos.

Prosseguindo, e após fazer um intercurso por Jo 3:16, ele acrescenta que "a eleição incondicional a luz de João 3.31-33, se torna fraca e perde forças (sic) a medida que logicamente entendemos que uma vez que Deus já fez a sua escolha incondicionalmente, seria inútil o texto dizer que Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro". O lógica do autor parece que é que se Deus escolheu uma pessoa na eternidade, sem considerar nada antevisto nela, tal pessoa não poderá dar testemunho de que Deus é verdadeiro. Mas, por que não? Não há impossibilidade lógica, na verdade há uma certeza de fato, que aquele que foi eleito na eternidade (e de novo, não importa se condicional ou incondicionalmente) irá aceitar o testemunho de Cristo.

Ele termina dizendo que "a conclusão que chegamos é que na doutrina da eleição incondicional, Deus não seria verdadeiro; pelas seguintes razões", que seriam "Jesus quando foi levantado na cruz, o fez para atrair a todos, ou seja, morreu para obter a salvação para todos e cada um dos homens, e aplicar os benefícios da sua morte somente aos que creem", que "Deus de fato amou a humanidade inteira enviando seu filho para morrer por eles" e finalmente "como pode Deus ser bom, amável e justo na perspectiva calvinista?". Nenhuma dessas razões, e algumas nem razões são, implica que a eleição incondicional torna Deus mentiroso. Há um imenso salto lógico entre "Deus escolhe incondicionalmente" e "Deus é mentiroso", que não é preenchido com "quem aceita o testemunho, certifica que Deus é verdadeiro".

Lamentavelmente, motivado pela sua antipatia ao calvinismo, o que é compreensível, o autor maltratou o texto e escreveu um artigo ruim, o que não é desculpável. E o fato do mesmo ter sido publicado sob auspícios da Editora Reflexão não contribui em nada para ela se firmar como uma editora que se propõe a promover a teologia arminiana.

Soli Deo Glória

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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