Disjunções arminianas injustificadas

“Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem.” (Marcos 10.9)
Na tentativa de manter a coerência do sistema, o arminianismo é obrigado a criar algumas diferenciações artificiais em seus elementos e que carecem de fundamentação nas escrituras. Algumas são defendidas conscientemente, outras afloram quando um ponto em questão é pressionado. Em todo caso, mostram como o sistema padece de robustez, em consequência de negar doutrinas que lhe parecem desagradáveis. Vejamos três casos em que disjunções aparecem, embora vários outros pudessem ser elencados.

Introduzem discórdia de propósitos na Trindade

O primeiro e talvez o mais evidente deles tem a ver com os propósitos das pessoas da Trindade na obra da salvação. No arminianismo, o Pai decidiu salvar apenas os eleitos [1], ou seja, aquelas pessoas que Ele previu que iriam crer e perseverar [2]. Já o propósito do Filho é remir todas as pessoas sem exceção [3], daí Sua morte ter abrangência universal. Ora, se o propósito do Pai é salvar apenas os que creem e o propósito da morte do Filho é expiar o pecado de todas as pessoas indiscriminadamente, então a vontade do Filho está dissociada da vontade do Pai. Jesus morreu por pessoas a quem Deus não pretendia salvar e às quais o Espírito Santo não aplica os benefícios da morte do Filho.

Em toda a Escritura a salvação é obra da Trindade e as três pessoas estão em perfeita harmonia quanto ao escopo da salvação. Não vemos Deus elegendo alguns e não outros, ao passo que Jesus morre vicariamente no lugar de toda a humanidade e o Espírito converte apenas uma parte dos que Jesus remiu. Pelo contrário, na Bíblia aqueles que o Pai predestinou são exatamente os mesmos que o Filho resgatou e aos quais o Espírito chama e regenera.

Dividem a obra sacerdotal de Cristo

No seu primeiro discurso na universidade de Lyden, Armínio escolhe como tema a obra sacerdotal de Cristo. No seu discurso ele promove uma disjunção entre a tarefa sacrificial e a tarefa intercessória de Jesus, afirmando que Jesus morreu por todos, mas intercede apenas pelos crentes [4]. O motivo dessa mudança de escopo é que se Jesus intercedesse por todos e cada um daqueles por quem morreu, todo mundo seria inevitavelmente salvo, posto que nenhuma oração do Filho deixa de ser atendida pelo Pai [5]. Subjaz nesse motivo a diferença na eficácia da morte e da oração de Jesus, pois a primeira não é em si mesmo eficaz para salvar (carece de algo externo à morte de Jesus), enquanto que a oração tem eficácia absoluta.

O sistema sacrificial do Antigo Testamento indica claramente que o sacerdote intercedia pelas mesmas pessoas em favor de quem foi oferecido o sacrifício. E o Novo Testamento reforça que Jesus intercede por quem Ele morreu, e vice-versa. Separar Sua morte sacrifical de Sua oração sacerdotal não é bíblico e implica que o Pai rejeitaria àqueles por quem Jesus ofereceu Sua vida, mas não as rejeitaria se tão somente Jesus oferecesse uma oração em favor delas. A ruptura arminiana da obra de Cristo faz com que Sua oração seja mais aceitável diante de Deus que Seu sofrimento.

Distinguem salvos e eleitos

Uma terceira distinção artificial que o arminiano é levado a fazer é criar duas classes de salvos. Ele é forçado a isso para poder sustentar que um salvo pode vir a perder a salvação sem com isso comprometer a infalibilidade da presciência divina. Se Deus anteviu a fé de alguns e os elegeu baseado nela, não pode estar errado quanto a eles serem salvos e, portanto, todos os eleitos seriam infalivelmente salvos. Isto implicaria que a doutrina da segurança eterna é verdadeira, o que a maioria dos arminianos não está disposta a admitir. A saída encontrada é dizer que nem todo salvo é eleito, criando duas classes de crentes, uma de meros salvos e outra de salvos eleitos, sendo que aqueles, por fim, serão condenados [6]. Por implicação, a eleição de ninguém pode ser confirmada nesta vida, exceto na mente de Deus.

É quase desnecessário dizer que a Escritura desconhece completamente essa distinção. Em toda a Bíblia os eleitos serão levados à fé e serão salvos e os salvos são aqueles que foram eleitos. Existe completa identidade entre salvos e eleitos, a distinção é extrabíblica e artificial. Não existe nenhuma insinuação escriturística de que um crente possa ser um salvo não eleito. Pelo contrário, quando ela afirma a eleição de alguém, afirma sua salvação, e vice-versa. E a eleição pessoal não apenas pode ser confirmada em vida, como os crentes são instados a confirmarem-na pessoalmente.

Conclusão

Convém considerarmos, em conclusão, a necessidade dessas disjunções artificiais. Dissemos que o arminianismo é obrigado a essas divisões como artifício para fugir de declarações bíblicas e suas implicações lógicas. Para não ser acusado de universalismo ao rejeitar a redenção definida, é forçado a manter que as vontades do Pai e do Filho diferem entre si quanto aos objetos da eleição e da expiação. Frente à afirmação bíblica de que o Pai sempre ouve o Filho, que morre em favor de todos, é levado a afirmar que Jesus não intercede por todos aqueles por quem morre. E para poder continuar sustentando que alguém comprado pelo sangue de Jesus, regenerado pelo Espírito Santo e guardado pelo poder do Pai, ainda assim pode vir a perder a salvação, tem que introduzir a estranha afirmação de que todo eleito é salvo, mas nem todo salvo é eleito.

Tão mais simples e bíblico seria afirmar que Jesus morreu com o propósito de salvar infalivelmente a todos que o Pai elegeu e ninguém mais, os quais serão levados à fé pela obra do Espírito, os quais serão guardados até o fim pela Trindade Santa.

Notas

[1] “Deus decretou salvar e condenar certas pessoas em particular” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 227)

[2] “Este decreto tem o seu embasamento na presciência de Deus, pela qual Ele sabe, desde toda a eternidade, que tais indivíduos, por meio de sua graça preventiva, creriam, e por sua graça subsequente perseverariam, de acordo com a administração previamente descrita dos meios que são adequados e apropriados para a conversão e a fé” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 227).

[3] “O preço da morte de Cristo foi pago por todos e por cada um” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 288)

[4] “Mas Cristo é descrito como intercedendo pelos fiéis, e excluindo o mundo, porque, depois que havia oferecido um sacrifício suficiente para remover os pecados de toda a humanidade, foi consagrado como ‘um grande sacerdote sobre a casa de Deus’ (Hb 10.21)” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 43).

[5] "Dessa circunstância, podemos concluir, com a maior certeza, que as orações dEle nunca serão rejeitadas" (Armínio, Obras, vol. 1, p. 43).

[6] “Os cristãos fiéis e os eleitos não são corretamente interpretados como sendo as mesmas pessoas.” (Armínio, Obras, vol. 1, p. 350). Convém considerar, porém, que mais tarde, Armínio parece defender que “a fé é peculiar ao eleito” (idem, p.255), embora arminianos modernos mantenham a distinção.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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