Estes texto é uma consideração ao texto intitulado "Se eu preciso melhorar a pontaria, o irmão Clóvis precisa pelo menos mirar", de autoria de Leandro Quadros, consultor bíblico do programa Na Mira da Verdade. Apesar da linguagem bélica do título, não há beligerância entre nós. Discordamos a respeito de uma doutrina, mas é desnecessário qualquer ataque pessoal ou denominacional, lembrando ainda que “a doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado” (Confissão de Fé de Wesminster). Como o texto dele é extenso e eu tendo a ser prolixo, este texto ficará maior do que o recomendável para blogs, peço desculpas aos leitores.
Pontos em que estamos de acordo
Creio que concordamos que João Calvino foi um teólogo singular, talvez o maior depois de Paulo, mas em seus escritos não era infalível como este último. Como o professor, também discordo de Calvino em alguns pontos, os quais não vem ao caso aqui. Então podemos deixar a figura do reformador de lado e doravante focar no que diz a Bíblia sobre o tema em debate.
Finalmente, embora não pareça à primeira vista, ambos concordamos que Deus não predestina para a perdição. A predestinação, em seu sentido bíblico, diz respeito tão somente aos salvos pela graça. De fato, quando se escolhe uns, outros são reprovados, mas as bases da salvação e da condenação não são as mesmas.
Esclarecimentos necessários
Eu defendo a predestinação bíblica, que o professor diz ser predestinação calvinista. Independente da alcunha que receba, o termo bíblico para predestinação é proorizo, formado pela preposição pro, (antes) e horizo (ordenar, apontar, especificar), significando então "predeterminar" (Expanded Greek-Hebrew Dictionary), "decidir de antemão" (Greek-English Lexicon Based on Semantic Domain), "preordenar" (Theological Dictionary of the New Testament), "predeterminar, decidir de antemão, preordenar" (Thayer's Greek Lexicon) , sendo que este último destaca que "com este termo o Novo Testamento se refere ao decreto de Deus desde a eternidade".
Teologicamente predestinação é "o aspecto da pré-ordenação de Deus, através do qual a salvação do crente é considerada efetuada de acordo com a vontade de Deus, que o chamou e o elegeu em Cristo, para a vida eterna" (International Standard Bible Encyclopaedia). Minha definição pessoal é que predestinação é o eterno propósito de Deus de conduzir seus eleitos à glória, preordenando todos os meios conducentes a este fim. Neste sentido, é um aspecto da própria eleição.
O conceito de livre-arbítrio não pode ser extraído de termos escriturísticos, pelo simples fato de não ser uma palavra bíblica. Por isso as definições teológicas variam, indo de "autodeterminação" a "poder de escolha contrária", passando por "capacidade de compreender, escolher e realizar o bem espiritual". É neste último sentido que me referirei a livre-arbítrio aqui. Aproveito para pedir ao Leandro uma definição para livre-arbítrio, conforme entendido por ele.
Calvinismo é uma visão de mundo pela ótica da soberania divina e da verdade das Escrituras. É um sistema de vida que abrange todas as áreas de nossas vidas: religião, política, ciência, artes, etc. A visão reducionista que considera o calvinismo apenas como defensor da predestinação ou dos cinco pontos não é correta. Tampouco é correto tomar calvinista como seguidor de Calvino, "homenagem" que João Calvino certamente declinaria.
Quanto às declarações do professor, não posso responder a todas, falta-me tempo e energia para isso, então vou me concentrar nas principais. Algumas já foram mais que satisfatoriamente tratadas pelo Helder Nozima em comentário postado aqui e no blog do prof. Leandro.
Comecemos com a afirmação "se os cinco pontos atribuídos a João Calvino não são dele, então as enciclopédias de história eclesiástica e os comentários bíblicos estão todos errados - menos o Clóvis". Um pouquinho de história da igreja não faz mal a ninguém. Calvino morreu em 1564, em Genebra, Suiça. Os Cinco Pontos da Remonstrância, foram debatidos e rejeitados, dando origem aos Cinco Pontos do Calvinismo, no Sínodo de Dort, Holanda, entre 1618 e 1619. Portanto, como João Calvino poderia ser o autor de um documento redigido 54 anos após a sua morte? Ah! sim, as enciclopédias: Dictionary of Christianity in America, Mcklintock and Strong Encyclopedia, Schaf's History of the Christian Church, Documentos da Igreja, Os cânones de Dort. Mas não precisa tanto, a Wikipedia resolve a questão.
O autor afirma que a "teologia calvinista determinista mostra um Deus que empurra “goela a baixo” a Salvação que muitos não irão querer" e que "Deus obriga a se salvar um indivíduo mesmo que ele não queira". Quanto ao querer a salvação, o calvinismo ensina duas verdades paradoxais: ninguém quer ser salvo e ninguém é salvo sem querer. Todos os homens naturalmente resistem a graça de Deus, inclusive os eleitos. Mesmo assim, só entra no céu quem está morrendo de vontade de chegar lá. Como isso é possível? A resposta é a graça, que vence a resistência dos eleitos, levando-os a desejar o que antes odiavam.
Diz ainda que "o calvinismo tira a responsabilidade do pecador que nega a Jesus". Pelo contrário, o calvinismo coloca a responsabilidade do homem nas bases certas. Os não calvinistas condicionam a responsabilidade ao livre-arbítrio, coisa que a Bíblia nunca faz. Já os calvinistas, e a Bíblia, baseiam a responsabilidade moral na autoridade de Deus e na luz recebida, além do fato que as escolhas morais são livres no sentido de que ninguém é coagido a pecar.
Outra objeção ao calvinismo é que este "torna a obediência a Deus irrelevante, pois, se sou predestinado tendo sido “pego pelo colarinho”, faço o que quiser e continuo salvo". Porém, o calvinismo coloca a obediência nas bases certas: o amor. "Se me amais, guardareis os meus mandamentos" (Jo 14:15). Não é o medo do inferno, mas o amor e a gratidão que move um salvo à obediência prazerosa, além da obra santificadora do Espírito em seu coração.
Para o professor, "o calvinismo distorce o ensino do livre-arbítrio", argumentando que "não haveria necessidade de o Espírito Santo convidar para a salvação quem quiser ser salvo (Apocalipse 22:17) se as pessoas não pudessem escolher permanecerem predestinadas ou não". Na verdade, não cremos que o homem tenha livre-arbítrio no sentido de ter capacidade para escolher a salvação por si mesmo. Deixados por conta própria, suas escolhas livres são invariavelmente más. Ninguém escolhe a salvação sem o concurso determinante da graça. Portanto, o livre-arbítrio assim idealizado é uma tolice.
Afirmações de que o calvinismo "anula a idéia de um castigo proporcional", que "nega que todos os homens são objetos da ira de Deus", que "ofusca a obra do Espírito Santo" na conversão, que "limita a graça de Deus" são tão despropositadas que não irei responder aqui. Basta afirmar que quem diz isso está mal informado ou mal intencionado. Apesar do título de professor e ofício de consultor bíblico, acredito que o caso do Leandro Quadros seja o primeiro.
O que eu creio
A doutrina da predestinação é um fato bíblico inegável. Nem mesmo o professor nega que a Bíblia enfatiza a predestinação para a salvação.
A Bíblia diz "bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos... predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade" (Ef 1:3,5). Sendo Deus Todo-Poderoso quem predestina, implica que essa predestinação é imutável e infalível, pois os decretos divinos são eternos. Não cabe a possibilidade desta predestinação ser alterada, menos ainda pelo livre-arbítrio. Como a própria palavra sugere, a predestinação ocorreu "antes da fundação do mundo" (Ef 1:4), portanto nada tem a ver com o que alguém faz ou deixa de fazer na história. Paulo diz "nos predestinou" (Ef 1:5). Quem seriam esses "nós"? É certo que inclui Paulo e a igreja de Éfeso, a quem escrevia. Cabe toda a humanidade neste "nós"? Certamente que não, pois Paulo está se referindo a "nós, os que cremos" (Ef 1:9). Paulo distingue os crentes dos "demais" (Ef 2:3) em sua carta. Mais adiante demonstrarei que os predestinados são parte da e não toda a humanidade.
E Romanos 9?
O professor me incumbiu da análise de Romanos 9, à luz da seção 9-11 da carta. Irei me desincumbir da tarefa em duas etapas. Aqui, analisarei apenas os versos 13-14 e o 18 e num texto à parte tratarei do capítulo 9 à luz da epístola inteira. Pois embora alguns considerem essa porção parentética, a mim parece perfeitamente integrada ao restante da carta aos crentes de Roma. Os versos em questão dizem:
"Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma (...) Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer." Rm 9:13-14,18
Algumas tentativas de diminuir a força dessas palavras tem sido feitas. Uma delas diz que como Deus ama todas as pessoas, a palavra odiar deve estar mal traduzida, devendo significar "amar menos". O apoio exegético a essa interpretação é fraco e de qualquer modo ela não resolve o problema dos que crêem que Deus ama a todos de igual maneira. Outros afirmam que Jacó e Esaú, no caso representam a nação de Israel e não os indivíduos nominados. Mas isso só aumenta o problema, pois ao invés de odiar um indivíduo Deus odeia povos inteiros. O fato inescapável é: Deus ama uns e odeia a outros, ou pelo menos ama uns de um modo que não ama a outros, sejam indivíduos ou povos.
Paulo antecipou a objeção: esse amor discriminador de Deus não seria injusto? A resposta de Paulo não poderia ser mais clara: "de maneira nenhuma!". Isto deveria bastar para sossegar nosso coração, mas assim não é com muitos. E como devemos separar os desnorteados que estão em busca da verdade dos incrédulos que criticam para desafiar, tentarei explicar por que a eleição de uns e a rejeição de outros não configura injustiça. Compreendamos primeiro o que seja justiça e injustiça.
Justiça é dar a cada um o que lhe é de direito. Na parábola dos trabalhadores Jesus ilustrou bem isso: "um dono de casa... tendo ajustado com os trabalhadores a um denário por dia, mandou-os para a vinha" (Mt 20:1-2) e ao final do dia "estes receberam um denário cada um" (Mt 20:10). Injustiça, por sua vez, é não dar a alguém o que lhe é devido. A denúncia de Tiago "eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude" (Tg 5:4) é uma exemplo de injustiça, pois a recompensa devida pelo trabalho não estava sendo paga.
Qual é a situação da humanidade diante de Deus? Alguém tem algum mérito ou direito a reinvindicar? Muito pelo contrário, todos os homens pecaram a são merecedores do salário do pecado, a morte. Portanto, Deus seria totalmente justo se enviasse todos e a cada um para o inferno sem maiores considerações. Esaú não tinha o que reclamar, como Jacó também não teria e nós tampouco temos.
Mas Deus amou somente a Jacó, isto não seria injusto para com Esaú? Voltemos à parábola dos trabalhadores. Na hora do pagamento "vindo os da hora undécima, recebeu cada um deles um denário" (Mt 20:10). Mal tinham trabalhado uma hora e antes mesmo dos madrugadores receberam por um dia inteiro! Os madrugadores reclamaram "dizendo: estes últimos trabalharam apenas uma hora; contudo, os igualaste a nós, que suportamos a fadiga e o calor do dia" (Mt 20:12). A resposta do patrão foi: "amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu e vai-te" (Mt 20:13-14) e ante o esboço de novo protesto emendou: "não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom?" (Mt 20:15).
Descobrimos então que entre justiça e injustiça há uma outra coisa que Sproul chama de não-justiça e que a Bíblia denomina misericórdia. A misericórdia não é justiça, pois dá a uns o que não merecem e tampouco é injustiça, pois não nega a outros o que lhes é de direito. Porque ninguém poderia exigir misericórdia como direito é que Deus diz "terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia" (Rm 9:15) e continua sendo justo. Por não dever nada a ninguém Ele "compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer" (Rm 9:18) sem incorrer em injustiça.
Onde Leandro Quadro erra o alvo
A tese defendida pelo consultor doutrinário adventista pode ser expressa nas seguintes frases: "toda humanidade está predestinada para a salvação" e "o livre-arbítrio foi devolvido ao ser humano, para que o ser humano escolha, continuar predestinado para a salvação, ou não". Numa mensagem anterior eu apresentei as implicações lógicas destas afirmações. Agora, mostrarei que ela não resiste a uma análise bíblica. Basta uma passagem para aniquilar, num só golpe, tanto a predestinação universal quanto o livre-arbítrio capaz de anular a predestinação:
"Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou." Rm 8:28-30
Os versículos 29 e 30 apresentam o que se costuma chamar de "corrente dourada da salvação". A intenção de Paulo é dar segurança aos crentes e para seu propósito nenhum desses elos pode ser quebrado. Os que foram conhecidos de antemão, na eternidade passada, são os mesmos glorificados na eternidade futura, sem acrescentar nenhum, sem faltar ninguém. Isto fica claro quando acompanhamos o raciocínio de Paulo.
Ele diz "aos que de antemão conheceu, também os predestinou", ou seja, todos os conhecidos são também predestinados. Depois ele afirma "aos que predestinou, a esses também chamou". Novamente, todos os que haviam sido conhecidos e predestinados na eternidade, são chamados na história, sem faltar um e sem sobrar nenhum. Continua o apóstolo "aos que chamou, a esses também justificou". Veja que o grupo permanece o mesmo, ninguém que é chamado eficazmente fica sem ser justificado. Finalmente "aos que justificou, a esses também glorificou". Observe que o mesmo grupo conhecido desde a eternidade passada mergulha no rio da história sendo chamado e justificado e sai do outro lado do rio, entrando na eternidade glorificado. Sem faltar nenhum.
Agora, testemos a tese do professor Leandro. Se toda a humanidade foi predestinada, então toda a humanidade é chamada eficazmente (em Paulo a chamada é sempre eficaz), toda a humanidade é justificada e toda a humanidade é glorificada, a conclusão é o universalismo. Vamos ler a passagem sob a ótica do professor:
"Porquanto [a humanidade] que de antemão conheceu, também predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E [a humanidade] que predestinou, também chamou; e [a humanidade] que chamou, também justificou; e [a humanidade] que justificou, também glorificou."
"Mas espere um pouco", você dirá, "o professor Leandro disse que o livre-arbítrio pode quebrar essa corrente dourada". Bem, não acredito em livre-arbítrio capaz de mudar o que está escrito na Bíblia, mas se isso fosse posível só aumentaria o problema. Vejamos:
"Porquanto [a humanidade] que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E [a humanidade] que predestinou, a [alguns] também chamou; e aos que chamou, [alguns] também justificou; e aos que justificou, [alguns] também glorificou."
O problema é que essa modificação inserida pela tese do professor mata o argumento paulino, que pretendia dar segurança aos crentes. Não podemos considerar a humanidade inteira como predestinada, nem podemos inserir modidificações na corrente dourada, sem violentar o intento do apóstolo.
Mas, se o "aos que" não se refere a toda a humanidade, a quem se refere? O próprio versículo precedente nos diz que trata-se "daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito" (Rm 8:28). É claro que a humanidade toda não ama a Deus, apenas parte dela. E somente aqueles que são chamados "segundo o seu propósito" entram na corrente dourada dos versos 29-30. Paulo faz uma afirmação para os crentes que estava passando por tribulação: todas as coisas neste mundo concorrem para o bem de vocês. E para provar isso ele demonstra que de eternidade a eternidade eles sempre estiveram sob os cuidados de Deus.
Há outras passagens que mostram que as teses da predestinação universal passível de anulação pelo livre-arbítrio é uma tolice sem comparação na história da controvérsia sobre a graça. Mas creio que esta basta para derribá-la. Espero que o professor Leandro submeta sua tese ao crivo dessa passagem e reconheça seu erro teológico. Para Deus, tudo é possível.
Soli Deo Gloria