Interpretando o Antigo Testamento


Alguém pediu:

"Gostaria de algumas orientações para estudarmos o Antigo Testamento, considerando a unicidade da Bíblia e sua relevância eterna, sem contudo atropelar regras de hermenêutica para a interpretação ideal."

Vou resistir à tentação de tratar da apropriação indébita que os desvairados da teologia da prosperidade fazem de muitas promessas do Antigo Testamento, para me deter na questão maior: qual a chave hermenêutica e quais princípios devem ser observados na interpretação do Antigo Testamento.

Em primeiro lugar, acho que não é demais enfatizar a unidade orgânica entre o Antigo e Novo Testamento. A Bíblia é uma só e os 66 livros constituem um todo coerente. Enfatizar o Novo Testamento em detrimento do Antigo é tão errado quanto aplicar o Antigo Testamento sem a luz do Novo. Ao lado da unidade de toda a Bíblia, devemos considerar que a revelação é progressiva, ou seja, no Novo Testamento temos uma revelação mais completa que a do Antigo Testamento. Porém, novamente, temos que tomar cuidado aqui, para não entendermos que o Novo Testamento tornou o Antigo ultrapassado ou obsoleto. A analogia é a da semente e da árvore. Assim como toda a árvore estava na semente, embora não estivesse totalmente revelada, assim também o Antigo Testamento contém o Novo, embora nele este não se encontrasse revelado. Descobrir o Novo Testamento no Antigo Testamento é a tarefa do intérprete bíblico.

Mas qual o princípio norteador ou chave hermenêutica para entender o Antigo Testamento? Lutero entendia que a chave para compreensão do Antigo Testamento era a pessoa de Cristo: todo o Antigo Testamento aponta para o Messias. Creio que ele estava certo, mas exagerou na dose, vendo passagens messiânicas onde nada se diz de Cristo. Calvino, embora aceitasse a centralidade de Cristo no Antigo Testamento, não foi tão extremado quanto Lutero e alguns salmos que este considerou messiânicos ele viu que eram apenas davídicos.

Eu entendo que a chave para interpretação segura do Antigo Testamento é o Novo Testamento. Mais precisamente, devemos seguir o exemplo de Jesus e dos apóstolos ao tratar de passagens vetero-testamentárias. Jesus, ao referir-se a alguma narrativa histórica, tomava-a como registro fiel do fato, além de extrair o sentido normal ao invés de fazer uma interpretação alegórica. Além disso, Jesus condenou a forma "livre" que os fariseus faziam do Antigo Testamento, colocando acréscimos interpretativos que eram tradição de homens. Portanto, Jesus interpretou o Antigo Testamento extraindo conclusões naturais do mesmo, sem forçar o sentido para inferir um sentido mais profundo ou abrangente (o tal do sensus plenior).

Consoante modo, os apóstolos aceitaram a exatidão histórica do Antigo Testamento e não interpretariam o texto de forma alegórica, exceto naqueles casos autorizados pelo contexto. Portanto, o Novo Testamento, na grande maioria das referências ao Antigo Testamento, interpretam-no de forma literal, ou seja, de acordo com as normas de interpretação de todo tipo de texto: história como história, poesia como poesia e símbolos como símbolos. Portanto, o próprio Novo Testamento estabelece o padrão de interpretação do Antigo Testamento: o método histórico-gramatical.

Isto posto, permita-me mencionar alguns princípios de interpretação aplicáveis a toda a Escritura, mas especialmente necessários para evitar interpretações corrompidas do Antigo Testamento.

Toda interpretação deve começar com a definição dos termos e uma vez definidos não devem ser mudados (interpretação gramatical). Deve-se buscar o sentido claro das palavras. Mas os termos bíblicos não devem ser interpretados fora de seus contextos, ou seja, cada palavra lida deve ser interpretada à luz das palavras que as seguem e a precedem. Considere também que a Bíblia foi escrita, em sua maioria, por judeus para judeus, portanto não devemos impor o nosso jeito de pensar, e sim o pensamento judeu dos tempos bíblicos. Portanto, as passagens devem ser lidas e entendidas sob compreensão do contexto histórico em que foram ditas e escritas (interpretação histórica). Finalmente, devemos fazer inferências lógicas, e não dar "saltos" na interpretação. Isso significa que a conclusão de um fato deve derivar de outro fato através de um raciocínio lógico consistente.

O estudo cuidadoso do Antigo Testamento à luz do Novo Testamento e seguindo regras estabelecidas e aceitas, evita consclusões esdrúxulas e é de muito proveito espiritual.

Muito mais se poderia falar sobre o assunto, inclusive sobre a igreja no Antigo Testamento (para esquentar o debate entre aliancistas e dispensacionalistas), mas nem estou com tempo para fazê-lo nem sou a pessoa mais indicada para escrever sobre isso.

4 comentários:

  1. Olá Clóvis, graça e paz! Excelente seu texto. Atualmente temos no meio evangélico as mais absurdas interpretações do Antigo Testamento. Seu artigo nos mostra os princípios a serem seguidos para se evitar isso.
    Que Deus continue te abençoando!

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  2. Oi André,

    Tenho acompanhado seus posts e dado glórias a Deus pelo Teologia e Vida.

    A pessoa que me dirigiu a pergunta, que resultou no artigo acima, citou um exemplo de mau uso do Antigo Testamento. Infelizmente, não é um caso isolado.

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  3. É preciso continuamente enfatizarmos a importância do Antigo Testamento. Nossa geração não lê nem o Novo imagina o Antigo. Sua ênfase neste artigo é muito oportuno. Que Deus continue a te abençoar.

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  4. paz de cristo jesus a todos irmãos!
    só um comentario rapido, não podemos nos esquecer de romanos cap.14 respeitar nosso irmão que ainda não foram esclarecidos, pois nosso Deus tambem os acolheu, oremos para que eles venham receber a mesma verdade revelada pelo espirito de Deus.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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