Charles C. Ryre e a expiação limitada

Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz. Cl 2:14
Charles C. Ryrie é um teólogo batista dispensacionalista e professor de teologia sistemática. Tem um mestrado e três doutorados em teologia, escreveu várias obras de referência na área teológica, incluindo algumas traduzidas para o português: Teologia Básica ao Alcance de Todos (Mundo Cristão), Como Pregar Doutrinas Bíblicas (Mundo Cristão) e Dispensacionalismo: ajuda ou heresia? (ABECAR). Mas sua obra mais conhecida é a Bíblia Anotada Expandida. Ele é o que se costuma chamar de calvinista dos quatro pontos, pois rejeita o quinto deles, a redenção particular.

Na sua Teologia Básica, ele defende a expiação ilimitada e tenta responder ao argumento calvinista de que se Jesus pagou pelo pecado de todos, então os pecados dos não eleitos serão pagos duas vezes, pois já “foram pagos na cruz pela morte de Cristo e serão pagos novamente no julgamento”.

Ele começa questionando “os israelitas que se recusaram a colocar o sangue nas portas de sua casa na Páscoa tiveram seus pecados pagos duas vezes? Quando o cordeiro pascal foi morto, seus pecados foram encobertos. Mas se alguém não colocou o sangue nas portas morreu imediatamente. Esse foi um segundo pagamento por seus pecados? Claro que não”. Ele complementa dizendo que “a morte após a desobediência de passar o sangue foi a retribuição justa pelo fato de a pessoa não ter se apropriado do sacrifício suficiente”. Prosseguindo, ele argumenta que “a expiação de Cristo pagou pelos pecados do mundo todo, mas as pessoas devem se apropriar desse pagamento pela fé. O mundo foi reconciliado com Deus (2Co 5.19), mas essa população que foi reconciliada como um todo, precisa ser reconciliada individualmente com Deus (v. 20)”.

Ele recorre então a analogia de uma escola que tinha um fundo que recebia doações para custear os estudos dos alunos pobres. Um comitê decidia quais alunos receberiam o auxílio e emitia um cheque em nome do aluno, que para receber deveria endossar o cheque e com ele pagar a escola. Se ele não endossasse o cheque, não receberia o crédito, embora a conta já tivesse sido paga. Então Ryrie conclui que “a morte de Cristo pagou pelos pecados de todas as pessoas, mas ninguém teve a sua conta paga até o momento em que creu”. Há quem seja convencido pela simplicidade da explicação de Ryrie. Mas nunca é bom confundir simplicidade com verdade, pois embora a verdade geralmente seja simples, nem tudo o que é simples é verdadeiro.

O erro básico de Ryrie é confundir o papel da fé na apropriação dos benefícios da morte de Cristo pelo pecador, com a aceitação pelo Pai da satisfação oferecida por Cristo. Para que aquilo que Jesus conquistou na cruz seja aplicado na vida do cristão é necessário fé. “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2:8). A fé é o meio pelo qual os benefícios da cruz se tornam reais na nossa vida.

Porém, a fé é absolutamente desnecessária para que Deus receba a satisfação oferecida pelo sacrifício de Jesus. Vamos entender bem a questão. Quando o homem pecou, tornou-se devedor de Deus. Uma nota promissória foi lavrada e Deus poderia executar sua justiça contra nós. “E, começando a fazer contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos” (Mt 10:24). De fato, a justiça de Deus requeria que a dívida fosse paga. “E, não tendo ele com que pagar, o seu senhor mandou que ele, e sua mulher e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto tinha, para que a dívida se lhe pagasse” (Mt 18:25). É claro que o homem não pode pagar a dívida para com Deus. Então Jesus morreu no lugar dele para pagá-la. “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53:10). A morte de Jesus satisfez completamente a demanda da justiça de Deus e ofereceu plena quitação da dívida.

É um completo absurdo pensar que a expiação oferecida por Jesus não tenha sido aceita pelo Pai, ficando em suspenso até o ingrediente da fé. Seria afrontoso se para que Deus considerasse a dívida paga, ao sangue de Jesus precisasse ser acrescido alguma coisa da parte do homem. Isso seria negar o valor intrínseco e a eficácia da morte de Jesus, e fazer do homem co-participante da expiação. Portanto, a fé do homem não complementa, nem confere eficácia ao sacrifício perfeito de Jesus. Noutras palavras, a fé é desnecessária para que o preço pago por Jesus seja aceito por Deus.

Sendo assim, como fica o arranjo de Ryrie para um preço completamente pago, mas ainda não realizado? Tenhamos em mente que ele não está falando dos eleitos, pois nestes o Senhor gera a fé necessária à apropriação da salvação. Ele está falando dos não eleitos, ou seja, dos que serão condenados no dia do juízo.

Consideremos os israelitas na noite da primeira páscoa, que são tomados como exemplo por Ryrie. Primeiro, que se ele quiser ser fiel ao relato bíblico, não deve considerar os israelitas como não eleitos, e sim os egípcios, pois os filhos de Israel eram o povo de Deus, e os egípcios os não eleitos. E a provisão de um cordeiro, para expiação, não foi feita para os egípcios, mas apenas para os judeus. Quanto aos eleitos, Deus tendo aceitado o sangue do Cordeiro, sempre os leva à fé necessária à apropriação, como ocorreu com os filhos de Israel: “E foram os filhos de Israel, e fizeram isso como o SENHOR ordenara a Moisés e a Arão, assim fizeram” (Ex 12:28). Já em favor dos egípcios (não eleitos), não havia Cordeiro preparado, e aconteceu que “à meia noite, que o SENHOR feriu a todos os primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se sentava em seu trono, até ao primogênito do cativo que estava no cárcere... havia grande clamor no Egito, porque não havia casa em que não houvesse um morto” (Ex 12:29-30).

Assim como Ryrie, também terminarei com uma analogia de pagamento. Pela lei brasileira, quando alguém financia um carro, o mesmo fica alienado à financeira. Em caso de atraso no pagamento, a financeira pode pedir na justiça a reintegração de posse, podendo inclusive contar com a força policial para recuperar o veículo. Se o cliente tiver se desfeito do carro ou escondê-lo, terá sua prisão decretada para forçar a entrega do bem. E uma vez apreendido, somente o pagamento integral da dívida, em até cinco dias, o livra de ir a leilão.

Agora, imagine que eu tenha financiado um carro e logo em seguida, perdido o emprego, ficando sem condições de pagar. O oficial de justiça me notifica que no dia seguinte a financeira virá buscar o carro. O problema é que eu o passei a terceiro, em troca da minha casa, e agora corro o risco de ir para a cadeia. Sem meu conhecimento, alguém vai até o juiz que emitiu a ordem de busca e apreensão e paga, não apenas as parcelas em atraso, mas o valor integral do financiamento. A partir do momento que o pagamento foi feito e aceito, existe alguma lei que possa me levar à prisão? Poderia, por exemplo, a financeira alegar que como não fui eu que realizei o pagamento ou porque não passei uma procuração para que um terceiro o fizesse, o pagamento não foi aceito? Claro que não. Se o juiz determinasse que eu pagasse de novo a dívida, estaria sendo injusto.

Assim, permanece em pé o argumento de que, se Jesus pagou por todos os pecados de todos os homens, então todos os homens serão salvos e Deus estaria agindo como um juiz injusto ao cobrar de novo uma dívida que já foi completamente paga.

Soli Deo Gloria

7 comentários:

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  2. A comparação de Charles C. Ryrie a respeito do sangue do cordeiro que livrou os filhos de Israel da morte com o intuito de justificar uma expiação universal foi de fato um grande equívoco.

    Para assim o fazer, Deus deveria de igual modo providenciar um cordeiro para os egípcios ou ainda assim, ao menos um dentre eles, sair beneficiado com a morte de um animal inocente a fim de provar sua tese, ou ainda um dos filhos de Israel ter sido morto na ocasião, algo que de fato não aconteceu.

    O que vemos? Todos os filhos primogênitos do Egito foram mortos, e todos os filhos primogênitos de Israel foram salvos.

    Deus não providenciou salvação para os egípcios, apenas para os seus eleitos, filhos da descendência de Israel.

    Ele poderia escolher outro caminho para tentar provar sua tese, não esse que em seu exemplo prático e real depõe veemente contra uma ordem divina procurando a salvação de egípicios e israelitas por igual, contrariando portanto sua crença do pagamento de culpa em caráter universal.

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    1. Não sei se lerás, Hélio, mas seu argumento não parece lá tão bom.

      Para assim o fazer, Deus deveria de igual modo providenciar um cordeiro para os egípcios ou ainda assim, ao menos um dentre eles, sair beneficiado com a morte de um animal inocente a fim de provar sua tese, ou ainda um dos filhos de Israel ter sido morto na ocasião, algo que de fato não aconteceu.

      Você acabou de contradizer a Bíblia.

      Porém se algum estrangeiro se hospedar contigo e quiser celebrar a páscoa ao SENHOR, seja-lhe circuncidado todo o homem, e então chegará a celebrá-la, e será como o natural da terra; mas nenhum incircunciso comerá dela. Uma mesma lei haja para o natural e para o estrangeiro que peregrinar entre vós.
      Êxodo 12:47-49


      Por que não, haver de algum egípcio curioso ter se interessado pelos judeus e desejasse ser um deles - ainda mais tendo visto que eles ficaram livres das pragas?

      A Bíblia não afirma que nenhum egípcio jamais quis se juntar a eles. Muito pelo contrário, Êxodo 12:38 dá a entender que no misto de gente tinha tanto israelitas quanto egípcios.

      O que vemos? Todos os filhos primogênitos do Egito foram mortos, e todos os filhos primogênitos de Israel foram salvos.

      Irrelevante.
      Ademais, a salvação dos primogênitos foi contingente à obediência - colocar o sangue no batente da porta, para que o Anjo da Morte não passasse pela casa. A contigência não é 'ser filho de Israel'.

      Deus não providenciou salvação para os egípcios, apenas para os seus eleitos, filhos da descendência de Israel.

      Calma lá! Acaso vai afirmar que os rebeldes do deserto, em especial os de Corá, são todos eleitos de Deus para salvação?

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  3. Satisfação pecuniária Clóvis? Uma posição difícil de sustentar.

    Se o exemplo do Ryrie foi infeliz, o seu também foi. Pode me mostrar apenas um versículo na bíblia que diga que a salvação dos eleitos é efetuada na cruz, a despeito da fé? Ademais, como ficam todos os versículos que dizem que a salvação é PELA fé?

    "todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (João 3:16)

    "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé" (Ef 2:8)

    "Sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para salvação preparada para revelar-se no último tempo" (1 Pedro 1:5).

    "Senhores, que me é necessário fazer para me salvar? Responderam eles: Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa." (Atos 16:30-31)

    "Porque, se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo;" (Romanos 10:9)

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  4. A expiação de Cristo não traz um satisfação tal a pecuniária, cujo devedor torna-se livre da dívida no momento da quitação, independete de quem pague a dívida. O modelo da expiação segue a satisfação penal, cuja liberdade do criminoso, sendo a pena cumprida por outra pessoa que não o próprio condenado, é efetuada tão logo sejam cumpridas todas as exigências estipuladas pelo juíz.

    No caso da expiação, a exigência é a fé.

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  5. Citei você e seu texto lá no arminianismo.com. Segue o link:

    http://www.arminianismo.com/index.php?option=com_kunena&view=topic&catid=2&id=5583&Itemid=348#17402

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  6. Algo que não se pode deixar passar em branco.

    Este trecho:

    Assim, permanece em pé o argumento de que, se Jesus pagou por todos os pecados de todos os homens, então todos os homens serão salvos e Deus estaria agindo como um juiz injusto ao cobrar de novo uma dívida que já foi completamente paga.

    Vindo de alguém que disse isso:

    É claro que Deus como soberano absoluto pode exigir qualquer coisa de Seus súditos, por exemplo, Deus poderia exigir de nós, sob pena de danação no inferno, que saltássemos da Terra à Lua três vezes por mês. E quem de nós teria o direito de questioná-lo quanto a isso?

    Me faz perguntar: EIHNNN?? De repente uma *amnésia cognitiva*? (falta um nome melhor para isso)

    Poderia até parodiar:

    É claro que Deus como soberano absoluto pode exigir qualquer coisa de Seus súditos, por exemplo, Deus poderia exigir de nós, sob pena de danação no inferno, que cobrar de novo uma dívida que já foi completamente paga. E quem de nós teria o direito de questioná-lo quanto a isso?

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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