Como as crianças nascem?

Uma enquete realizada no blog Cinco Solas procurou saber em que estado as crianças nascem: se saudáveis, espiritualmente enfermas ou mortas em pecado. Das 246 pessoas que responderam, 59% crêem que as crianças já nascem mortas em pecado, 22% que elas nascem espiritualmente saudáveis e 13% que elas nascem debilitadas pelo pecado. Apenas 5% declararam não saber a resposta.

Não se trata de apenas mais uma curiosidade, a enquete revela posicionamentos relacionados a três correntes teológicas: arminianismo, calvinismo e pelagianismo. Evidente que esse posicionamento pode ter sido assumido de forma inconsciente, o que neste caso evita respostas baseadas em rejeição a uma corrente teológica ou mesmo aversão a rótulos. Como as respostas podem ser enquadradas nessas correntes teológicas?

Os calvinistas afirmam que as crianças nascem espiritualmente mortas diante de Deus por causa do pecado. O termo calvinismo tem sua origem em João Calvino, porém suas doutrinas distintivas são anteriores e não se limitam ao que foi proposto pelo teólogo nascido na França em 1509 e que exerceu seu ministério em Genebra. No que respeita ao tema em foco, Agostinho já perguntava “se as crianças são inteiramente inocentes, por que as mães correm para a igreja quando elas adoecem?”. E completava que se as crianças soubessem falar e tivessem a compreensão de Davi, diriam que embora nenhum pecado fosse visível, “fui concebido em iniquidade e em pecado me gerou minha mãe”. Para o hiponense, depois do pecado de Adão “toda a raça à qual deu origem foi corrompida nele e, assim, submetida à pena de morte”.

João Calvino explicou o conceito dizendo que “como a morte espiritual não é outra coisa senão o estado de alienação em que a alma subsiste  em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo”. Essa alienação espiritual é universal, no sentido que afeta todas as pessoas, de todas as classes, de todos os lugares e de todas as idades.

Os que afirmam que as crianças nascem espiritualmente saudáveis identificam-se com o pelagianismo. Pelágio nasceu na Inglaterra em 354. Era um cristão moralista bem intencionado, preocupado com que o crente tivesse uma vida de atitudes e comportamento de elevado padrão moral. Ele negava o pecado original e a culpa herdada. Também negava que a graça de Deus fosse essencial para a salvação e afirmava que alguém poderia viver de forma impecável pelo poder do livre-arbítrio, mesmo antes da morte de Cristo. Para ele, o pecado era um problema social e não hereditário. As crianças nasciam sem a doença do pecado, e poderiam assim permanecer se fizessem uso correto do seu livre-arbítrio.

Ele admitia que Adão pecara, mas entendia que a natureza humana criada por Deus era inalteravelmente boa, ou seja, o pecado não altera a natureza humana, o máximo que o pecado faz é mudar o comportamento do homem. Assim, todos os homens são criados na mesma condição de Adão antes da queda. Da mesma forma que negava as consequências da Queda na natureza humana, Pelágio se revoltava contra a imputação da culpa de Adão à sua descendência. Para ele, culpar uma criança pelo pecado de Adão se constituía uma injustiça odiosa.

Charles Finney seguiu de perto a Pelágio ao negar tanto a corrupção da natureza humana pela Queda como a culpa herdada. “Eu me oponho à doutrina da pecaminosidade constitucional que faz com que todo pecado, original e real, seja uma mera calamidade e não um crime”, dizia. Para ele, a doutrina do pecado original é “um ramo de uma filosofia totalmente falsa e idólatra” e que é “infinitamente absurdo, perigoso e injusto, incorporá-la ao padrão da doutrina cristã, dar-lhe o lugar de um artigo indispensável de fé e denunciar todos aqueles que não engolem os seus absurdos, porquanto hereges”.

Os que escolheram que as crianças nascem enfermas pelo pecado alinham-se com a corrente arminiana, que deve seu nome a Jacó Armínio, um pastor e teólogo holandês que viveu de 1560 a 1609. Porém, deve ser dito de imediato que o próprio Armínio afirmava que “nada pode ser mais verdadeiramente dito do homem nesse estado do que o fato de ele estar completamente morto no pecado (Rm 3:10-19)”. É por afirmações como essas que Moisés Stuart considerou que é possível construir um argumento de que Armínio não era arminiano. Aliás, o arminiano Roger Olson disse que ele nunca deixou de ser calvinista.

Voltando ao ponto em questão, arminianos como Limborch, Whitby e John Taylor afirmam que o pecado com o qual nascemos “não é inerente à alma, pois esta é criada imediatamente por Deus e, portanto, se infectada pelo pecado, este seria de Deus”. Observa-se que o arminianismo advoga uma depravação que preserva a criança de ser culpada diante de Deus, do contrário Ele seria injusto. Além disso, o homem nasce depravado, mas ainda capaz de cooperar com o Espírito Santo, que potencializa o livre-arbítrio para esse fim.

John Wesley modificou o arminianismo corrente, dando uma maior ênfase à depravação, negando que o homem tenha qualquer capacidade de cooperar com a graça de Deus e afirmando que herdamos não apenas a natureza, mas também a culpa de Adão. Mas, por outro lado, afirma que a culpa de todos através de Adão foi perdoada pela justificação de todos através de Cristo, assim, o que dá com uma mão tira com a outra. Para o arminianismo o pecado afeta profundamente todas as pessoas que nascem. Mas não a ponto de torná-las culpadas diante de Deus (exceto  no wesleyanismo) e nem ao ponto de incapacitá-las de cooperar com a graça de Deus. Ou seja, nem a sentença de morte, nem incapacidade de participação no processo de cura estão presentes no sistema arminiano, no que se refere aos infantes. Os pecadores estão enfermos, muito enfermos, mas não a ponto de serem incapazes de estender a mão para receber a esmola do homem rico. O arminianismo foi rejeitado pelo Sínodo de Dort, em 1619.

A pesquisa apresenta algumas limitações, que precisam ser levadas em conta. Em primeiro lugar, as respostas obtidas são voluntárias e muitos que viram a enquete podem não ter respondido. Outros podem ter respondido mais de uma vez. Em segundo lugar, os visitantes do blog não são representativos da população em geral e talvez nem dos evangélicos em particular. Mesmo assim, pelo número de respondentes, a margem de erro da pesquisa é de 3,2%.

Soli Deo Gloria

12 comentários:

  1. Mano Clóvis, justamente motivados por debates sobre a condição humana, e especialmente sobre o Livre Arbítrio, que estão ocorrendo AQUI no CINCO SOLAS, que o pessoal do Genizah me encomendou um texto sobre o assunto. A matéria, que faz uma breve análise do pensamento de Arminio sobre a corrupção da natureza humana, deve ser publicada na próxima edição do Almanaque.

    O Cinco Solas é uma referencia.

    Abraços reformados.
    www.olharreformado.com

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  2. Clóvis,

    Apenas uma sugestão: Seria uma boa idéia colocar um post explicativo sempre ao iniciar uma nova enquete como essa, explicando a todos cada uma das opções.

    Seria uma boa para pessoas que nunca ouviram falar, ou não entendem certos termos.

    Exemplo bem "crasso":

    Deus não elege para a salvação
    (Não é Deus quem escolhe quem será salvo ou não)

    Deus elege baseado na presciência
    (Deus escolhe sim, mas por saber antes quem creria em Jesus)

    Deus não elege indivíduos
    (Deus não elege pessoas de forma alguma)

    Deus elege incondicionalmente
    (Deus escolhe quem será salvo ou não, baseado somente na Sua vontade, sem nada no homem)




    Talvez até mais pessoas participariam, por estarem "por dentro" da enquete.

    Um abração, Deus abençoe.

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  3. Oi Clóvis, eu adorei saber a história sobre os teólogos. Na medida que fui lendo eu percebi as diferenças dessas teologias. Naquela parte que fala sobre o arminianismo que o homem não salvo pode cooperar com o Santo Espírito, eu pensei nas palavras do Senhor Jesus Cristo que diz: "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer..." (João 6:44).
    A própria palavra do Senhor Jesus mostra que é somente Deus que traz o homem para a vida segundo a Sua vontade e isso é muito claro.
    Gostei muito do artigo, desejo que muitas pessoas leiam seus artigos e vejam a verdade.
    Abraço Clóvis!!

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  4. Mar 10:14 - Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim as crianças, e não as impeçais, porque de tais é o reino de Deus.

    Fiz minha escolha baseado no versículo acima, pois entendo que Deus não usaria como referência a um morto espiritual, condição imposta a criança, aos que fazem parte do reino de Deus.

    Paz

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  5. Existe um erro:
    Sou arminiano e não tenho certeza se uma criança nasce com tendência a pecar ou espiritualmente saudável. Não sou pelagianista pois não creio que obras salvem, mas aceito a possibilidade de crianças nascerem "saudáveis". Uma coisa não tem nada a ver com a outra. As doutrinas possuem muito mais que um ponto para que se classifique assim.

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  6. É simples meu querido,as crianças nascem em pecado,por causa da queda do homem e isso é óbvio,mas,tem um detalhe nesta história:Se quando ela estiver consciente de seu estado pecaminoso e aceita a proposta da Cruz de Jesus e seu sacrifício ela é diante de Deus declarada justa e salva e perdoada.Não creio na predestinação e nem na possibilidade das crianças que nascem morrerem sem a salvação eterna.A paz amados.

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  7. Anônimo,

    Geralmente, quando alguém começa uma resposta com a frase "é simples" (confesso, às vezes faço isso) é porque não considerou todos os aspectos e as implicações da posição adotada (sim, já fiz isso também). Vejamos alguns complicadores aí.

    Na primeira parte, você admite que "as crianças nascem em pecado", mas não diz em que grau o pecado afeta a capacidade dessa criança tornar-se consciente do "estado pecaminoso" e aceitar a "proposta da cruz". Se ele estiver morta, como a Bíblia diz, então precisará, antes de tudo, ser vivificado pelo poder de Deus.

    Na segunda parte você diz que não acredita na possibilidade das crianças que morrem na infância ficarem sem salvação. A isso poderia ser objetado que Herodes, o infanticida, foi um grande ganhador de almas e que Edir Macedo está certo ao defender o aborto. Afinal, se todas as crianças nascem salvas, diminuir a mortalidade infantil é trabalhar contra o reino. A propósito, minha resposta sobre o destino dos infantes mortos, quando não são filhos de crentes, é simples: não sei.

    Finalmente, você diz que não crê na predestinação. Mas não creio que exista essa possibilidade. Não se você crê no que a Bíblia diz. Pois ela fala de forma clara e cristalina, que Deus nos predestinou.

    Ou seja, não é tão simples assim.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  8. Anônimo,

    Você aponta um erro no artigo, pois "sou arminiano e não tenho certeza se uma criança nasce com tendência a pecar ou espiritualmente saudável". Acho que você não tem certeza de se é arminiano ou não. Pois Armínio afirmava que o homem estava morto em pecados.

    Você também diz "não sou pelagianista pois não creio que obras salvem, mas aceito a possibilidade de crianças nascerem "saudáveis". Uma coisa não tem nada a ver com a outra". O problema de Pelágio não era afirmar a salvação pelas obras, e sim negar que a natureza das crianças era corrompida pelo pecado herdado e absoluta incapacidade humana. Pois a salvação é através de obras, sempre foi. O ponto é que o homem, por causa do pecado, é incapaz de realizar obras que o torne aceitável diante de Deus. Daí que sua salvação se dá por imputação dos méritos da obra de Cristo, mediante a fé.


    Mas você está certo quando afirma que "as doutrinas possuem muito mais que um ponto para que se classifique assim". Nem tudo é preto ou branco. Porém, no seu caso parece que há uma certeza: você não é calvinista. E rejeitando, a priori, o calvinismo, restam-lhe, dos sistemas mencionados, o arminianismo e o pelagianismo. Arminiano você com certeza não é, admitindo que crianças nascem saudáveis. Embora negue, você está mais perto do pelagianismo que do arminianismo, e o arminianismo, nesta questão, está mais perto do calvinismo que do pelagianismo.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  9. Não existe grau para o pecado.Pelo que eu entenda,e qual é então a função do Espírito Santo de Deus,não é convencer o homem do pecado,justiça e juízo?Aí é que ela será vivificada pelo poder de Deus,como já dissestes.Segunda parte-Mas a questão aqui é teológica não é uma apologética contemporânea,que é a questão do aborto e assassinatos de crianças.E isso nada tem haver com colaborar ou não para o reino de Deus.Vou verificar a respeito dos infantes filhos de não crentes,quando morrem:Vão para o céu ou não.Realmente é um assunto crucial.Muitas coisas,presumo que não teremos resposta,somente na presença do pai tudo irá ser revelado.Sim eu creio na predestinação,mas, a nível universal.Pois Deus Amou o mundo de tal maneira....Seremos bons amigos.Que Deus lhe abençoe.

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  10. Simone Ávila,

    Mas que bons amigos, creio que somos irmãos em Cristo, se colocamos nEle toda nossa confiança para a salvação. A partir deste fato, podemos procurar um entendimento comum sobre as questões levantadas.

    Quanto ao destino dos filhos de descrentes que morrem na infância, eu me calo completamente, haja vista que a Bíblia nada diz sobre isso. Mas que todos viemos a esse mundo culpados diante de Deus é um fato.

    Sobre a predestinação ser universal, há duas implicações. Se predestinação significar o que o termo bíblico significa, então o universalismo é a conclusão lógica. A única maneira para fugir dessa implicação lógica é modificar o significado bíblico do termo. Mas com que autoridade podemos fazer isso?

    Em Cristo,

    Clóvis

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  11. Mas,eu entendo irmão que a chamada para a salvação é para todos os homens,sem,distinção nenhuma,em relação ao que significa a Bíblia,eu não fiz,ainda nenhuma exegese a respeito da predestinação para a salvação,pois para mim é muito claro.Eu entendo,com a tua permissão que o chamado para a salvação,é para todos,mas,infelizmente,nem todos aceitam esta salvação,por causa do livre -arbítrio.Eu não sei irmão,mas,para mim estas coisas são tão claras?!Um abraço que Deus te abençoe.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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