Algo em que se gloriar

Certa vez, o Senhor escolheu 70 discípulos e os enviou aos pares para as cidades que ele pretendia visitar, dando-lhe ordem para que curassem os enfermos. Quando voltaram, eles estavam extasiados, pois segundo disseram “Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome!” (Lc 10:17). Então Jesus lhes diz que maior razão têm para se alegrar em terem seus nomes escritos no céu. Com isso, aprendemos que podemos nos gloriar, mas pelos motivos certos. Paulo aprendeu isso de uma forma bem mais dolorosa.

1. Paulo tinha de que se gloriar

Se há um cristão que poderia se gloriar de experiências com o Senhor, esse alguém era Paulo. Ele recebia “visões e revelações do Senhor” (2Co 12:1). Não sendo um dos doze apóstolo, não andou com Jesus e por isso não recebeu as instruções gerais nem as privilegiadas que Jesus dava aos seus discípulos em seu ministério terreno. Além disso, quando ele exerceu o seu ministério, nenhum dos quatro evangelhos havia sido ainda escritos, com a improvável exceção de Marcos. Por isso, quando foi chamado pelo Senhor, precisou receber revelações especiais de Jesus. Uma delas foi a respeito da ceia do Senhor, pois ele escreveu “eu recebi do Senhor o que também vos entreguei” (1Co 11:23).

Paulo também “foi arrebatado até ao terceiro céu” (2Co 12:2), “foi arrebatado ao paraíso” (2Co 12:4). Embora João, o evangelista, anos mais tarde também tivesse uma experiência semelhante (Ap 4:1-2), até então de nenhum outro apóstolo é dito que tenha sido levado até ao céu em vida. Certamente esta era uma vantagem que Paulo poderia listar para mostrar a singularidade de seu apostolado em relação aos demais. Além disso, nesse arrebatamento, “ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir” (2Co 12:4). Ou seja, o apóstolo dos gentios não apenas recebeu do Senhor glorificado revelações que os demais apóstolos receberam quando Jesus estava neste mundo em estado de humilhação, mas também ouviu coisas que, inefáveis que eram não podiam ser transmitidas aos homens. Por tudo isso, Paulo pôde dizer “em nada fui inferior a esses tais apóstolos” (2Co 2:11), referindo-se aos seus opositores na cidade de Corinto.

De fato, Paulo tinha motivos para se gloriar. E se tal não ocorreu, foi porque o Senhor, em Sua providência, tomou as medidas necessárias, como veremos a seguir.

2. Deus cuidou para que Paulo não viesse se gloriar

Paulo reconhecia que poderia se engrandecer com “a grandeza das revelações” (2Co 12:7) recebidas. Segundo ele mesmo diz, foi-lhe “posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte” (2Co 12:7). Não vem ao caso aqui discorrermos sobre a natureza desse espinho da carne, sendo suficiente saber que era algo que abatia sobremodo o apóstolo, tirando todo ânimo de se considerar o máximo. Nisto vemos o cuidado de Deus para com os seus! Além do incômodo espinho, Deus mostrou-lhe o lugar que lhe cabia na relação entre servo e Senhor quando demorou ao dar-lhe resposta à sua oração. Por “três vezes” (2Co 12:8) ele pediu que Deus removesse o espinho e Deus silenciou. Assim, o homem que foi levado ao terceiro céu, que teve revelações excelentes e ouviu palavras exclusivas agora ora a Deus duas vezes e nem sinal do Senhor lhe atender. E na terceira vez a resposta não foi exatamente o que ele esperava, pois ao seu pedido de que afastasse o espinho Deus lhe diz apenas “a minha graça te basta” (2Co 12:9). A forma de Deus quebrar a soberba de Paulo foi enviar-lhe uma prova, demorar em responder a sua oração e por fim responder de forma diferente à pedida.

3. Paulo então escolhe se gloriar em outras coisas

Não podendo gloriar-se na excelência de suas visões e revelações, Paulo opta então por gloriar-se em coisas legítimas a um cristão. Ele diz que “de boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas” (2Co 12:9). Ele começa a ver vantagem em sua fragilidade e passa a ter “prazer nas fraquezas” (2Co 12:10), pois o seu Senhor também “foi crucificado em fraqueza” (2Co 13:4). Paulo também se gloriava e tinha prazer “nas injúrias” e “nas perseguições” (2Co 12:10), pois já havia dito a essa mesma igreja “quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos” (1Co 4:12). A injúria e a perseguição, inclusive com açoites e prisões, foi uma constante na vida desse apóstolo, podendo ele dizer “ninguém me moleste; porque eu trago no corpo as marcas de Jesus” (Gl 6:17).

Além do sofrimento infligido pelos adversários, o apóstolo alegrava-se “nas necessidades” e “nas angústias” (2Co 12:10). Embora reconhecesse que “o trabalhador é digno do seu salário” (1Tm 5:18) e tivesse a pouco dito que estivera “em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e nudez” (2Co 11:27), ele escreve “eis que, pela terceira vez, estou pronto a ir ter convosco e não vos serei pesado; pois não vou atrás dos vossos bens, mas procuro a vós outros” (2Co 12:14). Além dessa coisas, que o apóstolo chamava de “coisas exteriores”, pesava diariamente sobre ele “a preocupação com todas as igrejas” (2Co 11:28).

A escolha de Paulo em se gloriar nas fraquezas ao invés nas revelações não resultava de um desvio masoquista, mas da descoberta de uma verdade fundamental, à qual nos referiremos a seguir.

4. Paulo descobre o segredo do poder

Quando Deus lhe disse, “a minha graça te basta”, acrescentou “porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12:9). E Paulo imediatamente percebeu a vantagem de trocar a glória das revelações grandiosas pela glória do sofrimento. Disse ele, “mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo” (2Co 12:9). Essa descoberta incrível do apóstolo o levou a concluir “quando sou fraco, então, é que sou forte” (2Co 12:10). Numa outra ocasião ele escreveria “tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4:12-13).

Quem sabe se nos orgulhássemos menos de nossos cargos, títulos, conhecimentos, capacidades e habilidades não experimentaríamos mais do poder de Deus em nossa vida e na vida daqueles a quem ministramos?

Soli Deo Gloria
11/07/2005

2 comentários:

  1. Olá Clóvis,

    Belo texto, com a pena bem inteligível que lhe é sempre de costume. Muito consolador para vida de quem o lê.

    Deus o Abençõe.

    Graça e Paz
    Mizael Reis

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  2. Mizael,

    Soli Deo gloria!

    Fico feliz que sirva para consolo de quem, talvez, esteja passando por "espinhos na carne".

    Em Cristo,

    Clóvis

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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