Ezequiel 33 e a predestinação

“O que é que as Escrituras Sagradas dizem a respeito disso? E como é que você entende o que elas dizem?” (Lc 10:26 NTLH)
Estela,
image Em resposta à suas perguntas sobre Ezequiel 33 e a questão da predestinação faço os comentários que seguem. E tomo as palavras de Jesus supracitadas para lembrar que não devemos apenas investigar o que as Escrituras dizem, mas também procurar entender a mensagem que o Espírito Santo intencionou transmitir. Graças a Deus somos assistidos por esse mesmo Espírito e temos à mão ferramentas e métodos que nos ajudam a chegar ao sentido intencional do texto. Por isso precisamos, antes de nos apressar a dar uma interpretação teológica que é onde pretendemos chegar no exame das Escrituras, fazer uma análise gramatical-histórica, sob pena de não tratarmos o texto sagrado com o respeito que ele merece. Por isso, antes de responder às suas questões propriamente ditas, irei fazer algumas considerações prévias. Além disso, é importante não ignorar ou inverter o caráter progressivo da revelação, ou seja, o Novo Testamento amplia e esclarece o Antigo, e não o contrário. Para começar, destaco os versículos que você enfatizou:
“Se aquele que ouvir o som da trombeta não se der por avisado, e vier a espada e o abater, o seu sangue será sobre a sua cabeça.” (Ez 33:4)
“Mas, se o atalaia vir que vem a espada e não tocar a trombeta, e não for avisado o povo; se a espada vier e abater uma vida dentre eles, este foi abatido na sua iniqüidade, mas o seu sangue demandarei do atalaia.” (Ez 33:6)
“Se eu disser ao perverso: Ó perverso, certamente, morrerás; e tu não falares, para avisar o perverso do seu caminho, morrerá esse perverso na sua iniqüidade, mas o seu sangue eu o demandarei de ti.” (Ez 33:8)
“Quando eu disser ao justo que, certamente, viverá, e ele, confiando na sua justiça, praticar iniqüidade, não me virão à memória todas as suas justiças, mas na sua iniqüidade, que pratica, ele morrerá.” (Ez 33:13)
“Quando eu também disser ao perverso: Certamente, morrerás; se ele se converter do seu pecado, e fizer juízo e justiça, e restituir esse perverso o penhor, e pagar o furtado, e andar nos estatutos da vida, e não praticar iniqüidade, certamente, viverá; não morrerá.” (Ez 33:14-15)
“Desviando-se o justo da sua justiça e praticando iniqüidade, morrerá nela. E, convertendo-se o perverso da sua perversidade e fazendo juízo e justiça, por isto mesmo viverá.” (Ez 33:18-19)
Contexto e propósito do livro de Ezequiel
O tema de Ezequiel, que exerceu ministério no exílio babilônico, é a destruição de Jerusalém quando a “Glória” se afasta e sua restauração quando a “Glória” volta. O capítulo 33 marca exatamente o começo da segunda parte, o retorno da Glória e a restauração de Israel através de uma relação pessoal. O objetivo do livro de Ezequiel era tanto promover o arrependimento e a fé com o aviso de julgamento iminente como estimular a esperança e confiança com a mensagem da segunda parte do livro. Nos primeiros seis anos ele pregou que o templo e Jerusalém seriam destruídos, mas quando isso aconteceu, ele tornou-se um profeta da esperança, estimulando a confiança na restauração de Israel. A transição ocorre exatamente no 33, sendo os versos 21 e 22 fundamentais para entendimento do capítulo.
Palavras-chaves no texto em apreço
As palavras, nós sabemos, mudam de significado com o tempo. Torna-se necessário que no exame de uma passagem investiguemos o que a palavra utilizada significava para o autor e para os destinatários originais. Além disso, devemos considerar o sentido da palavra no contexto em que é utilizada, o que nem sempre é fácil de fazer. O que podemos alcançar é uma boa aproximação do significado original e interpretá-lo no contexto histórico.
Merece atenção especial no texto bíblico em questão as palavras e expressões que tem conotação soteriológica no Novo Testamento, tais como converter, demandar, iniqüidade, justiça, morrer, salvar e viver. Infelizmente, não é possível fazer um estudo completo de tais palavras, pois me falta tempo e preparo, mas destaco o que segue:
“Converter” (shuwb) é voltar, retornar, dar as costas a, desviar, e com esse sentido ocorre principalmente em Dt 30:10; 1Rs 8:35; 2Cr 6:24; Ne 9:28; Jó 22:23; Sl 51:13; Is 31:6; Jr 3:14; Ez 14:6; Dn 9:13; Os 14:2; Jl 2:13 e Zc 1:4. Significa deixar a prática da injustiça e voltar-se para a prática da justiça. Embora o sentido de shuwb seja bastante próximo de epistrepho no Novo Testamento, nesta passagem a ênfase é mais deixar de praticar más obras e passar a fazer boas obras. No Novo Testamento, converter-se é voltar às costas ao pecado (arrependimento) e voltar-se para Deus (crer).
“Demandar” (v.6 darash, v.8 baqash) é buscar, perguntar por, requerer, desejar, exigir, requisitar, conforme as traduções em Gn 9:5; 42:22; Dt 18:19; 23:21; 2Cr 24:22; Ez 33:6; 34:10; Gn 31:39; 43:9; Js 22:23; 2Sm 4:11 e Ez 3:18,20. As duas palavras tem a conotação de prestar contas. Mas é bom observar que aqui a Palavra não aponta primariamente para o dever de testemunhar do Novo Testamento, mas para a responsabilidade pelo sangue derramado estabelecida por Gn 9:5. Embora possamos tirar lições daqui, não devemos entender que demandar o sangue significa que se uma alma se perder por que alguém deixou de pregar esse alguém também perca a sua salvação.
“Não se der por avisado” (zahar) é ser ensinado, ser admoestado, com esse sentido ocorre em Sl 19:11; Ec 4:13; 12:12; Ez 3:21; 33:4-6. O tronco Nifal indica uma voz “passiva” ou “reflexiva”, ou seja, é uma ação operada no sujeito ou provocada nele por um agente. No caso, indica que o alerta do atalaia deveria provocar providências por parte do indivíduo, mas que ele pode não deixar-se ensinar, não admitir ser admoestado ou, no caso, não reagir ao aviso do profeta.
“Salvar” (malat) é fugir, livrar, libertar, salvar a vida, conforme Gn 19:7; 1Sm 19:11; 2Sm 19:5,9; 1Rs 1:12; Jó 6:23; Jó 29:12; Sl 33:17; 89:48; 107:20; Ec 8:8; 9:15; Is 46:2; Jr 39:18; 48:6; 51:6,45 e Am 2:14-15. Embora você não tenha destacado o verso 5, achei por bem mencionar o termo salvar nele contido, já que você pergunta sobre o sentido soteriológico do texto. Queria chamar a atenção para o fato de que salvar aqui é malat e não yasha’. Verificando a ocorrência do termo, percebi que ele quase sempre (não ouso dizer sempre, pois não analisei todas as ocorrências com o cuidado necessário) se refere a salvar a vida e não salvar a alma, num sentido espiritual. Já yasha‘ tem uma conotação mais espiritual, pois a Septuaginta geralmente o traduz como sozo e é dela que deriva o nome de Jesus, ou seja Salvador. Nesse verso, salvo engano meu, a LXX usa exaireo que comumente significa arrancar, livrar, libertar.
O contexto
Esta, como todas as outras passagens bíblicas devem ser interpretadas dentro de seu contexto e os versos 21 e 22, como já disse oferecem a chave para a compreensão da passagem. O que vem antes deles é talvez a última advertência ao povo, acompanhadas de palavras de alento e esperança.
Os versículo 1 a 6 é uma parábola e baseia-se no costume de se escalar vigias que ficariam sobre o muro em época de perigo de guerra. A responsabilidade da pessoa era muito grande, pois recaia sobre ela a culpa de alguém que fosse pego desprevenido e morto por uma negligência do atalaia. Tal era a responsabilidade de Ezequiel. Portanto, os versículos 1 a 9 tratam da responsabilidade do atalaia, mas também da responsabilidade do povo, ou seja, as pessoas tinham o dever de atender ao alarme do profeta. O verso 10 indica um reconhecimento de que o juízo que se abateu sobre eles era justo e que esse reconhecimento os levou a uma atitude de desespero. Então o profeta conclama o povo à renovação da esperança, destacando a graça de Deus (11), que o estado presente é mais importante que o comportamento passado (12-19) e que arrependimento e perdão são possibilidades imediatas (11, 14-16, 19).
Resposta às perguntas
1. Ezequiel aplica-se à soteriologia?
Sim. Porém temos que situá-lo no estágio da revelação que se encontra. Salvação no Antigo Testamento é comumente relacionada à paz e à prosperidade, bem como a livramento em tempo de guerra. Entretanto, mesmo como essa conotação aponta para a completa salvação em Cristo. Por isso todo o Antigo Testamento deve ser interpretado à luz do Novo Testamento.
2. A pessoa ouviu e não se deu por avisada... é a graça irresistível?
Primeiro, deixe-me esclarecer um ponto sobre a graça irresistível. Essa expressão, como quase todas as da TULIP, não é muito feliz em se tratando de clareza. Eu prefiro usar a expressão graça invencível ou chamada eficaz que causam menos confusão de entendimento. O que afinal significa “graça irresistível”, que ela nunca é resistida? Pelo contrário, ela é sempre resistida, inclusive até pelos eleitos, pois “vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis” (Atos 7:51) A depender da vontade do homem, ninguém “se daria por avisado”. O que acontece é que nos eleitos e em tempo oportuno, Deus opera eficazmente, levando-os a crer na mensagem do evangelho. A mesma graça antes resistida agora é prazerosamente aceita, ou no dizer de Davi, “o teu povo se apresentará voluntariamente no dia do teu poder” (Sl 110:3).
Mas creio que há algo em relação a esse verso que aponta para a graça eficaz. O “dar-se por avisado” está na forma Nifal, que é o “passivo” de Qal. Por exemplo, se no Qal se diz “ele viu”, no Nifal se diz “ele foi visto”. Ou seja, a ação é operada nele ou em relação a ele, e não por ele. Isto expressa bem o que Jeremias diz quando ora “converte-nos a ti, Senhor, e seremos convertidos” (Lm 5:21) que ecoa em Paulo quando diz porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2:13) e em Agostinho quando provoca engulho em Pelágio com sua oração “dá-nos o que de nós exiges”.
3 e 4. Como somos responsáveis por alguém que se perde se ele nunca foi predestinado?
Bem, precisamos entender qual era a responsabilidade do profeta. Não era converter as pessoas, mas alertá-las. O atalaia respondia pela sua negligência em não alertar, e não pelo fato das pessoas não se darem por avisadas, pois “a ti, pois, ó filho do homem, te constituí por atalaia sobre a casa de Israel; tu, pois, ouvirás a palavra da minha boca e lhe darás aviso da minha parte” (Ez 33:7). Veja o que Deus já havia dito na vocação do profeta:
Os filhos são de duro semblante e obstinados de coração; eu te envio a eles, e lhes dirás: Assim diz o SENHOR Deus. Eles, quer ouçam quer deixem de ouvir, porque são casa rebelde, hão de saber que esteve no meio deles um profeta. Tu, ó filho do homem, não os temas, nem temas as suas palavras, ainda que haja sarças e espinhos para contigo, e tu habites com escorpiões; não temas as suas palavras, nem te assustes com o rosto deles, porque são casa rebelde. Mas tu lhes dirás as minhas palavras, quer ouçam quer deixem de ouvir, pois são rebeldes” (Ez 2:4-7)
Da mesma forma, nós somos conclamados a pregar a todos, independente de serem eleitos ou não. Não seremos cobrados por Deus por ter “ganhado” uma, nenhuma ou uma multidão de almas, e sim por termos pregado corretamente o evangelho a todos. Jesus disse “ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16:15). Esta é a responsabilidade do atalaia. “Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado” (Mc 16:16). Esta é a responsabilidade do povo. Por isso Paulo disse “se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho!” (1Co 9:16). Ele não disse, “ai de mim se não ganhar almas”.
5 e 6. Se Deus disse que alguém viverá como poderá esse alguém se perder?
Muita calma nessa hora. Se tomarmos a passagem como tendo uma revelação completa da salvação teremos alguns problemas. Por exemplo, a salvação seria pelas obras, pois convertendo-se o perverso da sua perversidade e fazendo juízo e justiça, por isto mesmo viverá”. Sabemos que ninguém quer chegar ao ponto de ensinar a salvação meritória. Então, antes de fazer uma interpretação teológica, precisamos fazer uma interpretação gramatical e histórica. A palavra morrer neste contexto significa ser morto pela espada quando a cidade fosse invadida. E viver é ser livrado da morte, das mãos do inimigo. Ser salvo é ser poupado, ser arrancado da cidade antes da morte. Então, o texto não tem uma dimensão soteriológica? Tem, mas deve ser ampliada e interpretada pelo que o Novo Testamento diz. Para o tipo de salvação tratada por Ezequiel com o seu povo valia o “faze isso e viverá”. Ninguém pode apresentar um homem sequer que foi salvo eternamente por fazer o que a Lei dizia. Por isso no Novo Testamente a ordem é “vive e o fará”. Veremos um pouco mais disso na próxima pergunta.
7. É possível um justo se apartar de sua justiça praticando a iniqüidade a ponto de morrer por ela?
Devemos tomar cuidado com o sentido que uma palavra é usada numa determinada passagem. Há pelo menos dois sentidos em que a palavra justo é tomada. Um deles é ser justo na conduta e no caráter, ou seja, viver em conformidade com a lei. O outro é ser declarado justo por Deus. O primeiro sentido está relacionado à vontade preceptiva de Deus, que pode ser contrariada. O segundo sentido tem a ver com a decreto divino pelo qual Ele declara justos aqueles que crêem em Cristo. O primeiro tem a ver com uma vida sob a lei, o segundo com uma nova vida sob a graça. Como ninguém pode ser justo pela observância da lei, é necessário ser declarado justo pela justiça que vem da fé. Então à pergunta se um justo pode apartar-se da justiça é sim e não. Sim quando se trata de sua justiça pessoal, que nunca é perfeita e jamais pode torná-lo aceitável diante de Deus, pois são “todas as nossas justiças, como trapo da imundícia” (Is 64:6). Mas no segundo sentido, o da justificação declarativa um justo não pode perder a sua salvação, pois “é Deus quem o justifica” (Rm 8:33) pela imputação da justiça de Cristo em seu favor. Em Em Ezequiel 33, o ímpio poderia ter uma morte violenta por causa de sua impiedade, e o justo ser livrado da morte por causa de sua justiça. No Novo Testamento o crente pode ser disciplinado pelo Senhor, mas não perder a sua salvação.
Concluindo
O texto de Ezequiel 33, no sentido original aos judeus no exílio refere-se à responsabilidade do atalaia em anunciar o juízo e à responsabilidade do povo em atender a esse aviso. Tanto o castigo para o atalaia negligente como as consequências para o ouvinte descuidado e impenitente referiam-se à morte física, bem como a salvação referia-se ao livramento do inimigo. Aplicando-se a mensagem aos crentes do Novo Testamento, podemos extrair que os crentes são responsável por anunciar o evangelho e que os ouvintes são responsáveis pela maneira como respondem a eles. Isto de forma alguma contradiz ou apresenta alguma dificuldade para a doutrina da predestinação, pois esta não é negada diretamente no texto e tampouco essa doutrina exclui a responsabilidade humana. Num próximo texto poderei examinar específicamente Ez 33:11, que muitos se apegam contra a bendita doutrina da eleição e em favor da filosofia humanista do livre-arbítrio, para mostrar o que esse texto de fato ensina e o que não ensina.
Por ora, espero ter respondido às suas questões, ficando ainda a seu inteiro dispor.
Soli Deo Gloria

Um comentário:

  1. Sobre o vídeo ao lado, em que se pede a Piper uma explicação para a relação entre soberania divina e a responsabilidade humana, ele corretamente aceita as duas coisas por serem ambas ensinadas na Bíblia. Mas acho que lhe falta a sutileza de entender que a relação só parece insolúvel porque invalidamente SE PRESSUPÕE que responsabilidade exige liberdade. Mas em nenhum lugar a Bíblia ensina que liberdade é o pressuposto necessário da responsabilidade. Até porque, se houvesse tal relação, o homem não poderia ser responsável pelos seus pecados (mas a Bíblia diz que ELE É responsável), POIS A BÍBLIA ENSINA QUE O HOMEM NÃO É LIVRE (mas escravo de Deus ou do pecado).
    Vincent Cheung resolveu esta questão, e acho que mesmo autores cristãos respeitados (com razão) como Piper deveriam prestar atenção ao que Cheung diz sobre esse assunto. Sua resposta é racional e bíblica. Deus lhe concedeu o entendimento. Cabe a nós aceitarmos a resposta, e pararmos de chamar de mistério aquilo que a Bíblia não trata como mistério.
    abs!

    marcelo

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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