Algumas considerações preliminares
Para interpretação de um texto, precisamos atentar para algumas questões que são tão fundamentais quanto negligenciadas. A primeira delas é quanto ao objetivo da interpretação. Muitos vão ao texto se perguntando "qual é o sentido deste texto para mim?", porém a pergunta correta é "qual é o sentido desse texto para o autor?". Interpretar um texto bíblico é descobrir o sentido pretendido pelo seu autor e como ele seria compreendido pelos seus leitores originais. Qualquer outra intenção abre as portas para a alegorização e o subjetivismo pós-moderno. Outra coisa igualmente necessária é considerar o tipo de literatura que estamos interpretando. No Antigo Testamento temos escritos históricos, sapienciais e proféticos, que se caracterizam, de forma geral, por linguagem literal, figurada e simbólica, respectivamente. A dificuldade de interpretação aumenta quando vamos da linguagem literal para a simbólica.
Lutero foi o reformador que rompeu com o modelo hermenêutico que alegorizava as Escrituras, afirmando que para uma compreensão adequada das Escrituras devia-se buscar o sentido literal do mesmo. Para preservar a validade do Antigo Testamento como documento cristão, ele afirmava que tanto o Antigo como o Novo Testamento apontava para Cristo e este deveria ser o princípio hermenêutico a orientar a interpretação bíblica. Este princípio o levou a ver Cristo em muitas passagens do Antigo Testamento, especialemente nos salmos, várias das quais estudos posteriores demonstraram não tratar-se de passagens messiânicas. Um descuido desse princípio hermenêutico de Lutero, diga-se de passagem muito válido, pode nos levar a aplicar algumas passagens a Cristo quando pode nãos er o caso.
Cristo é uma criatura?
Para responder a esta pergunta, precisamos investigar primeiro se a sabedoria é uma personificação de Cristo e, caso afirmativo, se isto implica que Jesus foi criado. Como nos interessa o sentido intencional do texto, precisamos considerar o que Salomão tinha em mente ao escrever Provérbios. Ele próprio nos diz que o livro foi escrito "para se conhecer a sabedoria e a instrução; para se entenderem as palavras da prudência; para se receber a instrução do entendimento, a justiça, o juízo e a eqüidade; para dar aos simples prudência, e aos jovens conhecimento e bom siso; para o sábio ouvir e crescer em sabedoria, e o instruído adquirir sábios conselhos" (Pv 1:2-5). Portanto, os capítulos 1-9 tratam da sabedoria que resulta do temor do Senhor e não pretende ser, a menos que se busque um sensus plenior (um sentido mais profundo) nessa pasagem. Até a este ponto temos que concluir que Pv 8 trata-se de uma personificação da sabedoria como uma mulher atraente, e não uma figura de Cristo.
Consideremos a forma literária utilizada. No livro de Provérbios predomina a poesia (lembrando que a poesia hebraica carcteriza-se pelo ritmo de idéias e não de som). O estilo literário é favorável ao uso de linguagem figurada, e portanto, poderia essa ser uma passagem messiânica como muitas de Salmos e Isaías. Quais seriam as possibilidades? Descarta-se de cara a teofania, como as aparições do Anjo do Senhor, pois esta não é uma figura de linguagem. Restam então as tradicionais símile, metáfora, provérbio, parábola, alegoria, símbolo e o tipo. Desses, apenas a alegoria e o tipo teriam alguma possibilidade de enquadrar a passagem. Porém, um tipo sempre se refere a um correspondente (antítipo) no futuro, o que não é o caso aqui. De fato, creio que a passagem realmente se trata de uma alegoria, mas não da sabedoria significando Cristo e sim uma mulher representando a sabedoria.
Há diversos pontos de semelhança entre Cristo e a Sabedoria. Porém há várias diferenças fundamentais. Porém, se considerarmos que se trata de linguagem poética e que a intenção do autor não é formular uma doutrina cristológica e sim apresentar princípios para uma vida piedosa de acordo com a lei, podemos até considerar as semelhanças sem nos perturbarmos com as diferenças. Mesmo assim, vamos nos voltar para algumas dificuldades apontadas para aplicação desse texto à preexistência de Cristo, mesmo porque algumas seitas se valem delas para negar ou limitar a divindade de nosso Senhor.
Algumas traduções da Bíblia, como a NTLH e a NVI traduzem o termo hebraico qanah como criar, dizendo "o Senhor me criou", sendo que a NVI em nota de rodapé diz que a palavra também pode ser traduzido como "me possuiu". A Septuaginta traduziu qanah como ektisen (tornar habitável, criar) provavelmente derivado de ktaomai (adquirir, conseguir, ou procurar algo para si mesmo, possuir). Veja as seguintes passagens, onde a LXX traduziu qanah como ektisen: Gn 14:19, 22; Dt 4:32; 32:6; 31:22; Ml 2:10. Considerando que criar é apenas uma das opções e não a única, não creio que a Versão dos Setenta tenha errado na tradução, ficando o erro, se há, por conta dos tradutores modernos que escolheram me criou ao invés de me possuiu como tradução de ektisen. Além disso, em algumas passagens, especialmente as poéticas, a tradução de qanah como criar realmente parece ser a mais apropriada (vide Gn 14:19; Dt 32:6; Sl 78:54; Sl 139:13).
O termo traduzido como gerado nos versos 24 e 25 é chuwl (ou chiyl) e pode significar "ser trazido à luz", especialmente na literatura poética (Jó 15:7; 39:1; Sl 29:9; 51:5; 55:4; 90:2; Is 23:4; 66:7,8; Mq 4:10), estando também relacionado a contorcer-se nas dores de parto. Creio que gerado aqui, caso se insista que a sabedoria é uma figura de Cristo, deve ser considerado em termos de sua eterna procedência do Pai, e não no sentido de que houve um momento em que Ele não existia e outro a partir do qual foi trazido à existência.
Existiu uma população pré-adâmica?
Outro ponto levantado é o de uma pretensa população pré-adâmica. As expressões "mundo habitável" e "filhos dos homens" são usadas para apoiar essa idéia que, diga-se de passagem, é absurda e destituída de qualquer apoio bíblico direto. Quanto ao texto em si, basta observar que há uma certa ordem no "relato" da criação: os céus são preparados, os fundamentos da terra são compostos tornando-se mundo habitável e, finalmente, surgem os filhos dos homens. A sabedoria personificada estava com o Criador desde a eternidade até a criação do homem, passando pelos dias da criação. Jogar "os filhos dos homens" para "antes do começo da terra" é fazer violência ao texto.
Ademais, o testemunho bíblico é que a humanidade começou com Adão, pois "de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação" (At 17:26). Quando Salomão fala da "terra habitável" não estava descrevendo sua povoação antes de Adão, mas referia-se a finalidade da terra, pois Deus "não a criou para ser um caos, mas para ser habitada" (Is 45:18). Não há, pois, fundamento para teorizar sobre uma população pré-adâmica, por mais que a existência de Lilith pudesse ser atrativa para o próprio Adão!
Conclusão
Creio que o Provérbios 8 não é um texto cristológico, embora muitos o tenham usado para exaltar a eternidade de Cristo. Neste sentido, o tradução "o Senhor me criou" encontrada no Targum, na Septuaginta e em algumas versões modernas apresentam dificuldades se a expressão não for entendida no sentido de procedência. Ário, os pioneiros adventistas, os jeovistas e outros unicistas valem-se disso para justificar suas heresias infernais. Mas eles conseguem enganar torcendo passagens claríssimas das Escrituras, portanto, boas traduções por si só não bastam para por-lhe freios. Por outro lado, fazemos bem em não identificar tipos de Cristo onde as Escrituras não indicam, pelo menos de modo indireto, que tal é o caso. E sempre devemos evitar a interpretação alegórica do texto sagrado.
Boa tarde Clóvis!
ResponderExcluirVocê está de parabéns pelo belíssimo estudo sobre o livro de Provérbio, onde você defende de forma harmoniosa a divindade de Yeshua (Jesus) que está muito bem expresso nas páginas das Escrituras Sagradas. Esse estudo me enriqueceu bastante. Deus te abençoe e te encha da sabedoria Ele. Conheça o meu blog: abibliatemtodade.blogspot.com.br