Falar em línguas: natureza e atualidade - Parte 3

Nesta série de artigos, estamos estudando o dom de línguas, quanto aos aspectos da atualidade e natureza. No primeiro artigo da série, analisamos a alegação de que o dom de línguas não passa de algaravia, ou seja, um falar extático sem sentido, importado do paganismo. Em seguida, argumentamos em favor da atualidade do falar em outras línguas, a partir das palavras de Jesus registradas por Marcos (Mc 16:17). Em outro artigo, não desta série, discutimos a alegação de que o dom de línguas é a capacidade de falar idiomas humanos não aprendidos, também baseado no texto marcano. Uma leitura desses artigos permitirão ter uma visão geral de minha posição quanto ao falar em línguas. Podemos prosseguir a partir deste ponto.

Costuma-se afirmar que o dom de línguas é a capacidade de falar num idioma terreno não aprendido previamente. Discordamos dessa afirmação, e o fazemos a partir do que a Bíblia afirma nas diversas passagens que se referem a esse dom. Mas no presente artigo, vamos nos ater ao que Lucas relata em Atos 2. Em Atos temos o registro da descida do Espírito Santo sobre os discípulos reunidos no dia de Pentecostes, quando “todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2:4). O que leva à conclusão de que línguas se referiam à idiomas humanos é que a multidão “estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua” (At 2:6), maravilhando-se e dizendo “como, pois, os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos?” (At 2:8). Sob essa perspectiva o dom de línguas teria a finalidade de possibilitar evangelizar estrangeiros, que de outro modo não poderiam ser alcançados com a comunicação do evangelho. Porém, a leitura do contexto mostra que Atos 2 não corrobora essa tese. 

Vejamos alguns argumentos.

1. Os discípulos começaram a falar em línguas entre si. O texto diz que “todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava” (At 2:4). É importante notar que o evento começou num ambiente privado (“casa na qual estavam assentados”, At 2:2) e que só se torna público a partir do verso 6 (“ajuntou-se uma multidão”, At 2:6). O falar em línguas começou ainda na fase privada, onde estavam apenas galileus, e portanto o dom línguas para evangelização era desnecessário, haja vista serem todos crentes.

2. Os ouvintes eram judeus da Diáspora. Muito afirmam que os “judeus, tementes a Deus, vindos de todas as nações do mundo” (At 2:5) eram peregrinos vindos para a festa de Pentecostes. Porém, é uma suposição baseada no costume dos judeus irem a Jerusalém para as festas. Mas Lucas afirma que esses homens “estavam habitando em Jerusalém” (At 2:5). O termo κατοικουντες ocorre 43 vezes no Novo Testamento, 21 delas nos escritos de Lucas, onde sempre tem o significado de residentes de um determinado local (ex.: Lc 13:14; At 1:19; 2:14; 4:16; 7:2,4; 9:22,32; 17:26; 19:17). Assim, é mais provável que se tratava de judeus da Diáspora que haviam voltado para Jerusalém. Na expressão “visitantes vindos de Roma” (At 2:10 NVI), o termo traduzido como visitantes é επιδημουντες que segundo Strong pode significar “residente estrangeiro, vivendo com outro povo, em qualquer país”. Na única outra vez que o termo ocorre é traduzido como “estrangeiros que ali viviam” (At 17:21). Portanto, eram romanos que residiam em Jerusalém “tanto judeus como convertidos ao judaísmo” (At 2:11).

Considere também que Lucas diz que os moradores de Jerusalém eram “judeus, tementes a Deus” (At 2:5). A expressão “tementes a Deus” é exclusivamente lucana e usada somente em referência a judeus (Lc 2:25; At 8:2). E mesmo que tivessem nascido em outras terras, foram ensinados por seus pais na língua pátria. Em seu discurso Pedro se dirige aos “homens da Judéia e todos os que vivem em Jerusalém” (At 2:14), chama-os de “israelitas” (At 2:22) e de “Israel” (At 2:36). Sendo, pois, os ouvintes judeus e convertidos ao judaísmo residentes em Jerusalém, não havia necessidade do dom de línguas para evangelizá-los, logo, cai a justificativa para o dom de línguas como idioma terreno. 

3. Pedro não evangelizou em línguas. Muitos não percebem as mudanças no relato de Lucas. Num primeiro momento, os discípulos são batizados com o Espírito Santo e passam a falar em línguas, no interior de uma casa, provavelmente no segundo andar (At 2:1-4). Atraído pelo som sobre a casa, uma multidão se reúne e fica perplexa ao ouvir os discípulos falarem no idioma de suas terras maternas (At 2:5-13). Então Pedro se coloca em pé e explica o que está acontecendo (At 2:14-40). Nada no texto indica que Pedro estivesse pregando em outras línguas, pelo contrário, essa hipótese carrega uma dificuldade: se Pedro estivesse falando em línguas, e como só ele falou, ou ele falou simultaneamente em cada uma das línguas referidas ou falou apenas numa delas e cada um dos ouvintes entendeu na sua própria língua.

Mas como já vimos, a audiência era composta de judeus e de alguns prosélitos que moravam em Jerusalém. E mesmo que se tratasse de peregrinos, não havia necessidade do dom de línguas para evangelizá-los. É que na Palestina dos dias de Jesus falava-se aramaico, grego e latim. Nas regiões citadas falava-se o grego, exceto em algumas delas, que falavam aramaico. Logo, o dom de línguas era desnecessário para que eles entendessem a pregação de Pedro e não faz sentido que Pedro pregasse em língua para uma audiência que entenderia se ele falasse o vernáculo.

É preciso dizer, contudo, que os presentes ouviram os discípulos falarem em seus próprios idiomas. Minha explicação é que isso se deu como sinal, que os levaria a ouvir a pregação de Pedro. O milagre de ver galileus exaltarem a Deus nas línguas faladas nas terras em que nasceram causou a perplexidade que os levou se interessar pela explicação e a pregação de Pedro, o que finalmente os compungiu a crer no evangelho.

Concluindo, é certo que os galileus falaram em línguas que não haviam aprendido e que os judeus as entenderam em sua língua materna. Porém, o texto não diz que os discípulos se dirigiram aos presentes, evangelizando-os em seus idiomas maternos, mesmo porque isso seria totalmente desnecessário. Tanto é que Pedro lhes dirigiu a palavra sem ser em outras línguas, muito provavelmente usou o grego, que todos os presentes conheciam. Assim, crer que em Atos 2 houve a evangelização em outras línguas é resultado de uma leitura desatenta e controlada por pressupostos extra-bíblicos.

Soli Deo Gloria

8 comentários:

  1. Puxa Clóvis!!! terei que esperar como explicará ainda o 'falou em >>nossas próprias linguas maternas<<...'.

    Ok, eu espero.

    http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/12/as-novas-linguas-segundo-o-irmao-clovis.html

    Abraços

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    1. Obrigado pela paciência. Estou realizando auditorias, ainda de madrugada e voltando à noite, mas assim que der, posso responder aos seus questionamentos. Ah sim, e ler o seu artigo em seu blog e comentar, se couber comentário (às vezes é melhor deixar as duas posição e orar para que o Espírito Santo ilumine os leitores).

      Mas por ora, gostaria de chamar atenção para o seguinte fato: não é "falou em nossas línguas maternas" e sim "os ouvia falar em nossas línguas maternas". Só um detalhe? Talvez.

      Clóvis

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  2. Paz seja contigo irmão Clóvis. Ótima inciativa essa proposta de estudo acerca do dom de línguas. Pela graça de Deus conheci o evangelho de Cristo em uma denominação cristã pentecostal e, portanto, tal assunto é de grande interesse à mim. Contudo, uma dúvida ficou após a leitura desse post: Nem todos os que ouviram os discípulos falando em línguas por ocasião do Pentecostes entenderam o sentido do que era falado ? Outra dúvida: Os discípulos tinham consciência do que falavam ?(quero dizer houve uma operação dupla de línguas com interpretação no cenáculo ?). Aguardo resposta. Desde já agradecido, irmão Rafael Filgueira.

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  6. Olá anônimo de 31 de março de 2013 22:27, seus argumentos em outra língua foi bastante para a turma da língua estranha até para o céu, entender que a única utilidade do Verdadeiro Dom de línguas é pregação do Evangelho para pessoas de outras nações. Ou seja, não há utilidade objetiva pregar o Evangelho em “outra língua” para pessoas que fala a mesma língua, e mesmo assim para pregar o Evangelho aos não crentes (I Cor. 14:22,23). Fica fácil para aqueles que embora pecador, crêem em Cristo como diz as Escrituras (Mat. 4:4-João7:38,39), já que Paulo em I Coríntios 14: 21 esclarece o Dom de Línguas usando o termo “homens de outras línguas e lábios de outros povos”, fundamentando em Isaías 28:11. Ou seja, Paulo deixa bem claro que o Dom de Línguas refere-se a outras línguas que homens e povos falam, o que confirma atos 2:8,11. E, se fosse diferente Paulo estaria em contradição. Portanto, “irmãos, não sejais menino no juízo”... “sede homens amadurecidos’ (I Coríntios 14: 20).
    Osmar Ferreira-nadanospodemoscontraverdade@bol.com.br

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  7. Osmar,

    Você disse que "a única utilidade do verdadeiro dom de línguas é a pregação do evangelho". Como você explica o "orar em línguas", no qual Paulo diz que o crente "fala com Deus"? Deus precisa ser evangelizado?

    Além disso, gostaria que você refutasse ponto a ponto o artigo acima.

    Em Cristo,

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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