A doutrina inibe o agir do Espírito?

Hoje, ouvi de uma pessoa - muito simpática, atenciosa e certamente seguidora de Cristo - o seguinte comentário a respeito de um culto por que participamos durante a manhã: "Aqui há uma boa valorização da Palavra e da doutrina, mas a liturgia é muito 'fechada' e o Espírito Santo não tem liberdade para agir" (parafraseando). Estávamos em uma paróquia protestante.

Essa declaração me fez recordar as inúmeras semelhantes que já ouvi, geralmente, de irmãos carismáticos. "Este culto é muito mecânico", "tanta doutrina atrapalha o agir do Espírito Santo", "aqui não há espaço para o Espírito trabalhar", etc. Mas será que essas declarações estão corretas à luz da Escritura? Será que tais afirmações são portadoras de uma compreensão acurada sobre o Espírito de Deus, sobre a instrumentalidade da Palavra e sobre a teologia do culto? A resposta é: não. E eis algumas razões que justificam meu parecer.

Primeiramente, Deus é um ser todo-poderoso. Ele é onipotente. Nada e ninguém pode limitá-lo, cerceá-lo, restringi-lo, manietá-lo, conduzi-lo, impedi-lo, atrasá-lo ou influenciar sua operação de qualquer maneira, em qualquer nível. Isaías 46.10 diz: "... Meu propósito permanecerá em pé, e farei tudo o que me agrada", e no v. 11 completa: "Do oriente convoco uma ave de rapina; de uma terra bem distante, um homem para cumprir o meu propósito. O que eu disse, isso eu farei acontecer; o que planejei, isso farei". E Deus diz, em Isaías 43.13: "Agindo eu, quem o pode desfazer?”. Diante desses poderosos testemunhos bíblicos e, lembrando que o Espírito Santo é Deus, resta ainda algum espaço para defendermos uma posição na qual o Espírito - o próprio Deus - está limitado por alguma situação em particular? É claro que não! Como poderia o Deus criador de todas as coisas, inclusive da nova vida aos pecadores espiritualmente mortos, ver-se "limitado" por qualquer coisa? Uma obra muito mais difícil de ser concebida pela mente humana, a de dar nova vida a pessoas mortas em seus pecados e delitos (Ef 2.1), nós conseguimos aceitar pela fé, por que não haveríamos de aceitar o fato de que nada pode impedir e nem mesmo dificultar a operação do Santo Espírito de Deus? Segue-se que o Espírito opera quando quer, como quer, independentemente de nossa permissão[1]. Liturgias mais elaboradas e menos "intuitivas" não restringem o agir do Espírito Santo de maneira alguma. Nem circunstancialmente nem ontologicamente o Espírito do Senhor é ou pode ser limitado.

Em segundo, a Palavra de Deus, bem como a doutrina por ela revelada são os principais e maiores instrumentos de santificação do qual o Espírito se vale para operar nos corações e mentes dos regenerados. Jesus, em João 15.3 diz: "Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado". O texto de Efésios 6.17 nos diz que a Palavra é a espada do Espírito, o instrumento empregado por Ele. A segunda carta de Pedro diz: "Dessa maneira, ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas vocês se tornassem participantes da natureza divina e fugissem da corrupção que há no mundo, causada pela cobiça" (1.4); e sabemos que as mencionadas promessas, neste contexto, são figuras para toda a Palavra de Deus. Pedro também diz: "Agora que vocês purificaram a sua vida pela obediência à verdade..." (1Pe 1.22); lembrando também que a verdade objetiva só pode ser encontrada na Escritura Sagrada, como revelação especial de Deus para nós. Portanto, uma conclusão é inevitável aqui: a Palavra de Deus não somente NÃO atrapalha o agir do Espírito Santo como, justamente ao contrário, o consolida e torna eficaz. Um crente só é santificado pela instrumentalidade da Palavra sob a operação do Espírito. Um crente só é aperfeiçoado na consciência do evangelho mediante a Palavra de Deus, que imprime significado e promove contraste objetivo na interpretação dos fatos e conceitos. Logo, a carga doutrinária de um culto está diretamente ligada às possibilidades de transformação VERDADEIRA de caráter nas pessoas. Um culto repleto de atividade musical, manifestações emotivas e participações livres e espontâneas podem agradar a uns que carecem de uma maior "interatividade", por assim dizer, mas não são eficientes para a operação de santificação dos salvos e, portanto, não podem ser considerados como verdadeiros cultos a Cristo. Uma verdadeira e transformadora reunião precisa ser, do início ao fim, pautada e imbuída na Palavra do Senhor, com forte conteúdo doutrinário e sólido ensino na sã doutrina.

Portanto, voltando à afirmação de que um culto bem organizado liturgicamente e fundamentado no ensino inibe o agir do Espírito Santo, concluímos que tal assertiva é deveras equivocada. Com efeito, essas características não apenas não podem limitar a operação do Espírito Santo como são os verdadeiros conduintes da ação santificadora da Terceira Pessoa. Correndo o risco de me repetir, reafirmo algo em que venho insistido: não existe vida espiritual à parte da Escritura como ferramenta de aperfeiçoamento empregada pelo Espírito.
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Notas

1. O fato de o Espírito Santo ser soberano em seu agir não significa que não exista ummodus operandi passível de identificação em suas operações, segundo a Escritura. Deus é absolutamente soberano, porém, revelou a nós as formas usuais pelas quais opera.

Paulo Ribeiro

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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