Natureza e deveres dos ministros

A natureza dos ministros do Novo Testamento. São Paulo expõe de modo simples e conciso o que devemos pensar dos ministros do Novo Testamento ou da Igreja Cristã, e o que devemos atribuir-lhes: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus” (I Co 4.1). Por isso, o apóstolo quer que estimemos os ministros como ministros. Ora, o apóstolo os chamou hyperétas, “remadores”, que têm os olhos fixos unicamente no timoneiro, e são, assim, homens que não vivem para si mesmos ou segundo sua própria vontade, mas para os outros - a saber, para os seus senhores, de cujas ordens dependem inteiramente. Pois em todos os seus deveres todo ministro da Igreja recebe ordens, não de satisfazer a sua vontade, mas de executar apenas o que está nos mandamentos recebidos do seu Senhor. E neste caso declarasse, expressamente, quem é o Senhor, isto é, Cristo, a quem os ministros estão sujeitos em todas as questões do ministério.

Os ministros, despenseiros dos mistérios de Deus. Contudo, para explicar mais completamente o ministério, o apóstolo acrescenta que os ministros da Igreja são ecónomos ou despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, em muitas passagens, especialmente em Efésios, cap. 3, São Paulo chamou “mistérios de Deus” ao Evangelho de Cristo. E os escritores antigos também chamaram “mistérios” aos sacramentos de Cristo. Assim, é para isto que os ministros da Igreja são vocacionados - para pregarem o Evangelho de Cristo aos fiéis e para administrarem os sacramentos. Lemos, ainda, em outro lugar do Evangelho, a respeito do “mordomo fiel e prudente” a quem “o senhor confiará os seus conservas para dar-lhes o sustento a seu tempo” (Luc 12.42). Além disso, em outra passagem do Evangelho, um homem parte de viagem para um pais estrangeiro e, deixando sua casa, passa os seus bens e a sua autoridade nesta a seus servos, dando a cada um a sua tarefa.

Do poder dos ministros da Igreja. Agora, pois, convém falarmos algo também acerca do poder e do dever dos ministros da Igreja. Sobre esse poder alguns têm discutido diligentemente, e a ele sujeitaram tudo o que há de supremo valor na terra, e o fizeram contrariamente ao mandamento do Senhor, que proibiu aos seus discípulos o domínio e recomendou com insistência a humildade (Luc 22. 24 ss; Mat 18.3 ss; 20.25 ss). Há, na verdade, outro poder que é simples e absoluto, chamado o poder do direito. Segundo esse poder, todas as coisas do mundo inteiro estão sujeitas a Cristo, o Senhor, como ele mesmo declarou, dizendo: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mat 28.18). E ainda: “Eu sou o primeiro e o último, e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno” (Apoc 1.18). Igualmente: “... aquele que tem a chave de David, que abre e ninguém fechará, e que fecha e ninguém abre” (Apoc 3.7).

O Senhor reserva para si o verdadeiro poder. Esse poder o Senhor o reserva para si, e não o transfere a nenhum outro, ficando ao lado ocioso, como espectador, enquanto os seus ministros trabalham. É Isaías que diz: “Porei sobre o seu ombro a chave da casa de David” (Is 22.22). E outra vez: “O governo está sobre os seus ombros” (Is 9.6). Ele não lança o governo sobre os ombros de outros homens, mas ainda conserva e usa o seu próprio poder, governando todas as coisas.

O poder do ofício e o ministerial. Entretanto, há outro poder, o do oficio, ou poder ministerial, limitado por aquele que usa do poder pleno. E este é mais semelhante a um ministério do que a um império. As chaves. Um senhor concede poder ao seu mordomo e para isso dá-lhes as chaves, com as quais ele introduz na casa ou dela exclui quem o seu senhor gostaria de introduzir ou excluir. Em virtude desse poder o ministro, pelo seu oficio, realiza aquilo que o Senhor ordenou que ele fizesse, e o Senhor confirma aquilo que ele faz e deseja que o que o seu servo fez seja considerado e reconhecido como se ele mesmo o tivesse feito. Indubitavelmente, é a isto que se referem estas sentenças evangélicas: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus” (Mat 16.19). Ainda: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos” (João 20.23). Mas, se o ministro não agir em todas as coisas como o Senhor lhe ordenou, mas transgredir os limites da fé, então o Senhor certamente invalida aquilo que ele fez. Eis por que o poder eclesiástico dos ministros da Igreja é aquela função pela qual eles de fato governam a Igreja de Deus, mas fazem todas as coisas na Igreja como o Senhor as ordenou em sua Palavra. Quando essas coisas são feitas, os fiéis as consideram como feitas pelo próprio Senhor. Quanto às chaves, delas já se fez acima uma menção.

O poder dos ministros é um e o mesmo em todos. Ora, o mesmo e igual poder ou função é concedido a todos os ministros na Igreja. Certamente, no princípio os bispos ou presbíteros governavam a Igreja em comum; nenhum homem se elevava acima de qualquer outro, ninguém usurpava maior poder ou autoridade sobre seus co-epíscopos. Lembrados das palavras do Senhor “Aquele que dirige seja como o que serve” (Luc 22.26) conservavam-se em humildade, e pelo serviço mútuo ajudavam-se no governo e na preservação da Igreja.

A ordem a ser preservada. Entretanto, por causa da preservação da ordem, algum dos ministros convocava reunião da assembléia, e perante ela propunha assuntos a serem apresentados, reunia as opiniões dos demais e, enfim, o quanto estava nele, providenciava para que não surgisse confusão. Assim procedeu São Pedro, segundo lemos nos Atos dos Apóstolos, o qual contudo não era, por essa razão, preferido pelos demais, nem revestido de maior autoridade que os outros. Mui acertadamente disse o Mártir São Cipriano, no seu De Simplicitate Clericorum: “Os outros apóstolos eram, seguramente, o que era Pedro, dotados de semelhante associação de honra e poder; mas, [seu] primado procede da unidade para que a Igreja seja manifesta como sendo uma”.

Como e quando um foi colocado diante dos outros. Também São Jerônimo, em seu Comentário à Epístola de Paulo a Tito, diz algo não muito diferente disto: “Antes que começasse a ligação a pessoas em religião, pela instigação do diabo, as igrejas eram governadas pelo conselho comum dos anciãos; mas, depois que cada um passou a pensar que aqueles que ele havia batizado eram seus e não de Cristo, decretou-se que um dos anciãos fosse escolhido e colocado sobre os demais, em quem recairia o cuidado de toda a Igreja, e que se removessem todas as sementes de cismas”. Contudo, São Jerônimo não recomenda este decreto como divino; pois ele logo acrescenta: “Assim como os anciãos sabem pelo costume da Igreja que se acham sujeitos ao que foi posto sobre eles, assim saibam os bispos, que se acham sobre os anciãos mais pelo costume do que pela verdade de uma disposição do Senhor, e que devem governar a Igreja em comum com eles”. Até aqui São Jerônimo. Por conseguinte, ninguém tem o direito de proibir o retorno à antiga constituição da Igreja de Deus, e recorrer a isso com apoio no costume humano.

Os deveres do ministro. São vários os deveres dos ministros, no entanto, em geral se restringem a dois, nos quais todos os outros estão incluídos: o ensino evangélico de Cristo e a legítima administração dos sacramentos. É dever dos ministros reunir a assembléia sagrada e nela expor a Palavra de Deus, e aplicar toda a doutrina à razão e ao uso da Igreja, de modo que o que for ensinado seja útil aos ouvintes e edifique os fiéis. É dever dos ministros, afirmo, ensinar os ignorantes e exortar; e estimular os indecisos ou ainda os que caminham lentamente à avançar no caminho do Senhor, consolar e confirmar os pusilânimes, e armá-los contra as multiformes tentações de Satanás; corrigir os que pecam; reconduzir ao caminho os transviados; levantar os caídos; convencer os contradizentes; expulsar do rebanho do Senhor os lobos; repreender, prudente e severamente os crimes e os criminosos; não serem coniventes nem se calarem perante o crime. Mas, além de tudo isso, é seu dever administrar os sacramentos, recomendar o uso justo deles e, pela sã doutrina, preparar todos para recebê-los; conservar também os fiéis numa santa unidade; e impedir os cismas, enfim catequizar os ignorantes, recomendar à Igreja as necessidades dos pobres, visitar, instruir e conservar no caminho da vida os enfermos e os afligidos por várias tentações. Além disso, devem cuidar das orações públicas ou das súplicas em ocasiões de necessidade, juntamente com o jejum, isto é, procurar uma santa abstinência; e cuidar o mais diligentemente possível de tudo o que diz respeito à tranqüilidade, à paz e à salvação das igrejas.

E para que o ministro possa realizar todas estas coisas da melhor maneira e mais facilmente, requer-se especialmente dele que tema a Deus, seja constante na oração, entregue-se à leitura sagrada e, em todas as coisas e em todas as ocasiões, seja vigilante, e pela pureza de vida deixe sua luz brilhar diante de todos os homens.

Disciplina. E, visto que a disciplina é absolutamente necessária na Igreja, e que a excomunhão foi outrora usada, entre os antigos, e havia, entre o povo de Deus julgamentos eclesiásticos, nos quais esta disciplina era exercida por homens sábios e piedosos, será também dever dos ministros regular essa disciplina para edificação, de acordo com as circunstâncias dos tempos, do estado público e com a necessidade. Todas as vezes que se deve observar a regra, tudo se deve fazer para edificação, decente e honestamente, sem tirania e divisão. Pois o apóstolo atesta que lhe foi outorgada pelo Senhor autoridade na Igreja “para edificação, e não para destruição” (II Co 10.8). E o Senhor mesmo proibiu arrancar o joio no campo do Senhor, porque haveria o perigo de ser arrancado o trigo juntamente com ele (Mat 13.29 ss).

Mesmo os maus ministros devem ser ouvidos. Ademais, detestamos energicamente o erro dos donatistas, que consideram a doutrina e a administração dos sacramentos eficazes ou ineficazes, segundo a vida boa ou má dos ministros. Porquanto sabemos que a voz de Cristo deve ser ouvida, mesmo dos lábios de maus ministros; porque o Senhor mesmo disse: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém, não os imiteis nas suas obras” (Mat 23.3). Sabemos que os sacramentos são santificados pela instituição e pela palavra de Cristo, e que são válidos para o fiel, embora administrados por ministros indignos. Sobre este assunto Santo Agostinho, o bem-aventurado servo de Deus, muitas vezes argumentou com base nas Escrituras, contra os donatistas.

Sínodos. Apesar disso, deve haver disciplina adequada entre os ministros. Nos Sínodos a doutrina e a vida dos ministros devem ser cuidadosamente examinadas. Os que pecam devem ser repreendidos pelos anciãos e reconduzidos ao caminho certo, se forem curáveis; e, se forem incuráveis, devem ser depostos, e, como lobos, expulsos do rebanho do Senhor pelos verdadeiros pastores. Se são falsos mestres, não podem ser de modo algum tolerados. Nem desaprovamos os concílios ecumênicos, se convocados segundo o exemplo dos apóstolos, para a salvação da Igreja e não para sua destruição.


O obreiro é digno do seu salário. Todos os ministros fiéis, como bons obreiros, são também dignos do seu salário e não pecam quando recebem estipêndios e todas as coisas necessárias a eles mesmos e suas famílias. O apóstolo mostra em I Co, cap. 9 e em I Tim, cap. 5, bem como em outras passagens, que tais coisas são, de direito, dadas pela Igreja e recebidas pelos ministros. Os anabaptistas, que condenam e difamam os ministros que vivem do seu ministério, são também refutados pelo ensino apostólico.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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