Carta a um irmão inquieto - 4

Querido Rick,

Espero que continue firme em sua fé em Cristo e que sua preocupação com minha saúde espiritual tenha diminuído, depois das explicações que lhe dei sobre o que eu creio a respeito da predestinação. Na minha primeira carta, disse que o calvinismo não era uma seita, mas uma posição amplamente assumida na história da igreja. De fato, penso ter demonstrado que a Bíblia ensina uma doutrina da predestinação e que rejeitar a predestinação implica rejeitar o ensino bíblico. Na segunda carta, expliquei que predestinação não pode significar algo posterior ao ato de crer, baseando-me no significado bíblico do termo e nas construções frasais em que o mesmo ocorre. E na minha última carta, respondi às suas objeções de que a doutrina da predestinação torna Deus injusto por fazer acepção de pessoas e que tornaria vãs a morte de Jesus e a pregação do evangelho. Você não disse o que achou das minhas respostas, mas penso que as considerou, pois em sua última e breve resposta disse que o homem tem livre-arbítrio, que não é um robô e que tem direito de escolha.

Pelo que entendi de seu raciocínio, se Deus predestinou pessoas para a salvação, então o homem não teria livre-arbítrio e não tendo livre-arbítrio não seria mais que um robô, que age mecanicamente sem fazer escolhas pessoais. Gostaria de repensar com você essas afirmações. Porém, não estou bem certo do que você entende por livre-arbítrio, parece-me que é algo como “direito de escolher por si mesmo”, levando em conta a analogia do robô que não faz escolhas pessoais. Minha resposta é para essa ideia de livre-arbítrio.

Em primeiro lugar, peço que note que estamos mudando o foco da nossa conversa, saindo do tema “o que Deus faz” para “o que o homem tem”, embora continuemos falando da salvação. É a ordem certa das coisas, porém a sua mudança de foco não é do tipo “tendo considerado como Deus é e age, vejamos suas implicações no que o homem é e faz”, mas “se o homem é assim, então Deus não pode ser e agir dessa forma”. Você ainda está resistindo à ideia de um Deus que predestina e O está medindo com régua humana e, acredite-me, isso é não só impossível como tentar é perigoso e pecaminoso. Devemos, antes de tudo, entender e aceitar o que a Bíblia diz sobre a pessoa e a obra de Deus e só então voltar o nossos olhos para o homem, estudando-o sob a luz que temos do Senhor.

Segundo, a simples predestinação de pessoas para a salvação não exige necessariamente a inexistância de livre-arbítrio. Bastaria, por exemplo, que Deus predestinasse para a salvação aquelas pessoas que Ele, olhando da eternidade, viu que fariam bom uso de seu livre-arbítrio. De fato, há pessoas que creem na predestinação dessa forma. Eu pessoalmente rejeito essa saída, mas ela serve para mostrar que crer na predestinação para a salvação não contradiz o livre-arbítrio, desde que aquela seja modificada de soberana e graciosa para condicional e dependente de uma ação prevista do homem.

Por outro lado, e em terceiro lugar, ser o livre-arbítrio possível não implica que o homem o tenha. Ao contrário da predestinação, que você reluta em admitir, o livre-arbítrio não é declarado na Escritura. Isto não basta para negar sua existência, mas deveria esfriar o fervor com que muitos o defendem. E admitindo-se que Deus tenha criado o homem com livre-arbítrio, ele passou incólume pela Queda? Dizer que o homem natural, caído, tem livre-arbítrio, tal como tinha no Éden é diminuir, senão negar completamente, o efeito devastador do pecado na natureza humana. É aceitável dizer que o homem tem arbítrio, mas devemos aceitar que tal arbítrio não é livre, mas cativo, pois aquele que é vencido torna-se escravo do vencedor. A Bíblia descreve o homem como escravo, escravidão que inclui a sua vontade.

Em quarto lugar, não ter um arbítrio livre não faz do homem um robô de carne. Um cão não tem livre-arbítrio, age por instinto. Mesmo assim, a diferença entre um cão e uma máquina é, em todos os aspectos, assombrosa. Não ter livre-arbítrio não transforma um cão numa máquina. E há outro abismo igualmente enorme entre um cão e um homem. Por que então o fato de ter um arbítrio escravizado tornaria o homem menos que um cão? A afirmação de que sem livre-arbítrio o homem um robô é infantilmente tola. O que distingue e coloca o homem acima de todos os seres e coisas criadas na terra não é o livre-arbítrio, mas a imagem de Deus que ele carrega.

Em quinto e último lugar, quando digo que o homem não tem um arbítrio livre, não quero dizer que ele não faz escolhas. Faz, e o faz de forma livre, no sentido de que escolhe sem coerção externa. Porém, considerada a sua natureza caída e sua inclinação para o pecado, não tem tem capacidade, por si só, de realizar boas escolhas espirituais, como a de crer e ir a Cristo. Em suma, não nego que o homem natural realize escolhas, mas afirmo que entregue a si mesmo ele sempre escolhe o pecado e nunca o que é aceitável a Deus.

Concluindo, o livre-arbítrio não é uma prova de que a predestinação bíblica não existe, pelo contrário, a existência do livre-arbítrio é que carece de prova escriturística. Além disso, não ter um arbítrio livre não transforma o homem em robô, pois o que o distingue como homem é a imagem de Deus e ele de fato continua fazendo escolhas, mas no que se refere ao bem espiritual é incapaz de boas escolhas.

Soli Deo Gloria

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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