Pentecostalismo e Calvinismo: alguma relação possível? - 1

Historicamente, a relação entre calvinistas e pentecostais não tem sido sempre amistosas. Em muitas obras publicadas o tom belicoso não foi evitado. Contudo, em tempos mais recentes e de forma crescente, pentecostais em busca de uma teologia mais robusta tem se aproximado do calvinismo, enquanto estes tem demonstrado maior abertura à liturgia pentecostal. Mesmo assim, essa crescente minoria tem sido vista com cautela, tanto por pentecostais como por calvinistas. E embora se admita que seja “muito possível que um crente individual, ou uma igreja, creiam firmemente nos cincos pontos do calvinismo e ao mesmo tempo creiam no batismo com o Espírito Santo como segunda experiência e na continuidade do dom de línguas” (MACLEOD, 2005), tais crentes e igrejas são vistas como inconsistentes. A questão, pois, é se os dois sistemas são necessariamente auto excludentes ou existe compatibilidade entre as doutrinas distintivas de pentecostais e calvinistas.

O presente artigo não pretende ser uma defesa da doutrina pentecostal ou da teologia calvinista. Ao invés de investigar se os dois sistemas resistem a uma análise bíblico-teológica, parte-se da premissa de que ambos, ou pelo menos um deles, são verdadeiros, confrontando-os para descobrir se as duas teologias são fundamentalmente incompatíveis entre si. Dessa forma, o interesse recai sobre os eventuais conflitos entre os sistemas e sobre objeções recíprocas que apresentam, deixando de lado as objeções gerais com que os adeptos de uma ou outra corrente se deparam continuamente.

Não é raro, nas controvérsias teológicas, haver más representações das posições em debate. No que diz respeito ao pentecostalismo e calvinismo não é diferente, mesmo em obras tidas como de referência, que deveriam ser imparciais ao máximo. Neste trabalho serão seguidas as definições que concordem ao máximo com as oferecidas pelos próprios movimentos.

O que é calvinismo

O calvinismo é a tradição doutrinanária associada ao reformador João Calvino (1509-1564), que forma a base teológica de igrejas reformadas e presbiterianas e define o conteúdo das confissões de fé clássicas como a Confissão Belga (1561), o Catecismo de Heidelberg (1563), os 39 Artigos da Igreja Anglicana (1562, 1571), os Sínodos de Dort (1619) e a Confissão de Fé de Westminster (1647), entre várias outras. As Institutas da Religião Cristã, escrita por Calvino em 1536 e ampliada em sucessivas edições, expõe as características centrais da teologia reformada. Além da obra de Calvino, os escritos de Theodore Beza (1519–1605), seu sucessor em Genebra e de Heinrich Bullinger (1504–1575), de Zurique, autor da Segunda Confissão Helvética, contribuíram para a formação da tradição reformada, que se espalhou rapidamente no continente europeu e inspirou o surgimento do puritanismo na Inglaterra (REID, 1990).

O calvinismo é também definido como uma visão de mundo fundamentada num único ponto, o qual determina sua perspectiva da história, política, artes e de cada detalhe da vida (REID, 1990): a total soberania de Deus sobre a Criação, a História e a Redenção. Apesar do seu aspecto abrangente, o calvinismo é muitas vezes definido em termos de cinco pontos: Total Depravation (Depravação Total); Unconditional Election (Eleição Incondicional); Limited Atonement (Expiação Limitada); Irresistible Grace (Graça Irresistível); e Perseverance of the saints (Perseverança dos Santos) (ANDRADE, 2002). A origem dessa representação em cinco pontos remonta ao Sínodo de Dort, reunido entre 1618 e 1619 nesta cidade da Holanda, com o propósito de apresentar uma resposta aos chamados Cinco Pontos da Remonstrância, documento elaborado por dissidentes que pediam revisão da doutrina da salvação reformada (BUSWELL JR, 1983).

Depravação Total refere-se à condição do homem depois da Queda e significa que o pecado em seu poder, influência e inclinação afeta o homem por inteiro. Nosso corpo está caído, nosso coração está caído e nossa mente está caída. Não há nenhuma parte de nós que escape da devastação de nossa natureza humana pecadora (SPROUL, 2005). Isto não significa que o homem é tão mau como poderia ser, mas que ele nunca é bom o tanto que deveria ser. Neste estado não pode fazer nada que agrade completamente a Deus e sem a ação decisiva da graça divina não pode lograr ser salvo. Um termo correlato é inabilidade, que é a incapacidade de sairmos do estado de depravação. O homem não pode mudar o seu caráter ou agir de forma diversa dele. Não é capaz de conhecer as coisas espirituais, obedecer a lei de Deus e em seu estado carnal não pode agradar a Deus em nada. C. S. LEWIS (2005) captou bem a inabilidade do homem ao dizer que “quanto pior você é, mais precisa do arrependimento e menos é capaz de arrepender-se”. A única forma de sair dessa condição desesperadora é através de uma operação divina, chamada regeneração (WOOD, 1996).

O segundo ponto é chamado Eleição Incondicional e “consiste em que, antes da Criação, Deus selecionou da raça humana, antevista comod ecaída, aqueles a quem Ele redimiria, traria à fé, justificaria e glorificaria em Jesus Cristo e por meio dele” (PACKER, 1998). A eleição é dita incondicional por ser uma expressão da graça livre e soberana, não constrangida nem condicionada por qualquer coisa naqueles que são os seus objetos. Para o teólogo pentecostal DUFFIELD (1983), a “eleição é um ato soberano de Deus porque, sendo Deus, não tem que consultar-se com, nem perguntar a opinião de ninguém mais.  E na medida em que a eleição teve lugar ‘antes da fundação do mundo’ (Ef 1:4), não havia ninguém com quem Deus pudesse consultar. E todo homem tendo pecado e sendo culpado diante de Deus, Ele não estava sob obrigação de prover salvação a ninguém. A eleição é um ato da graça de Deus por esta mesma razão”.

Expiação Limitada é a visão de que a obra de Cristo na cruz foi intencionada em favor dos eleitos apenas, embora pelo seu valor fosse suficiente para todos (KARLEEN, 1987). Este talvez seja o ponto mais controverso do sistema calvinista, em parte por má expressão ou compreensão. O que o calvinista limita não é o valor da morte de Cristo. De acordo com calvinista SPROUL (2005), “a expiação de Jesus Cristo é suficiente para todos os homens. O valor do sacrifício que Cristo ofereceu ao Pai é de valor infinito. Há mérito na obra de Cristo para cobrir os pecados de cada ser humano que já viveu. Assim, não há limite de valor no sacrifício que foi feito. Neste sentido, o que Cristo fez na cruz é suficiente, objetivamente considerado, para cobrir os pecados de cada indivíduo no mundo”. A questão tem a ver com o propósito que Deus tinha ao enviar seu Filho com a missão de morrer na cruz: era tornar possível a salvação de todos ou certa a salvação dos eleitos? Os calvinistas respondem afirmativamente a esta última parte.

Graça Irresistível é o conceito teológico que denota que a obra de Deus na salvação de um indivíduo procede primeiramente de Deus e que não falha em trazer a pessoa para baixo dos benefícios da cruz, uma vez que não pode ser frustrada por seres humanos (KARLEEN, 1987). Assim, Deus sozinho é o autor da salvação, do início ao fim. Porém, o termo Graça Irresistível não é isento de confusão. Pode transmitir que a graça de Deus não sofre resistência, enquanto a Bíblia se refere aos que sempre resistem a graça divina. Por isso, alguns preferem o termo Graça Invencível, o que indica que a graça, embora possa ser resistida é finalmente eficaz nos eleitos. A Graça Irresistível tem a ver com a regeneração, que na visão calvinista é monergística, vale dizer, é um ato simples e exclusivo de Deus, no qual a alma do homem permanece passiva (HODGE, 2001).

A Perseverança dos Santos é a crença de que uma pessoa regenerada e verdadeiramente justificada pela fé em Cristo tem a salvação eterna e não pode perde-la (REID, 1990). É uma decorrência lógica dos pontos anteriores. Se Deus elegeu incondicionalmente um povo para salvar e se proveu uma expiação que assegura essa salvação, é inevitável que os eleitos para a vida eterna irão chegar a essa vida eterna. Em outras palavras, negar a perseverança dos santos é negar a graça soberana de Deus na eleição incondicional (BUSWELL JR, 1983). Novamente, argumenta-se que o termo Perseverança dos Santos não é o mais adequado, preferindo-se Perseverança do Salvador ou Preservação dos Santos. De qualquer modo, a perseverança é o aspecto visível da eleição e da expiação.  O que não significa que um crente regenerado não possa cair parcial ou temporariamente da fé. Nem que “uma vez salvo, salvo para sempre”, não importando a vida de santidade ou no pecado. Mas que se ele foi de fato salvo, então será reconduzido à fé e ao arrependimento, para alcançar a santidade necessária para ver o Senhor.


2 comentários:

  1. Gostei do que li, irmão Clovis. Como sabe, me mantive assembleiano e pentecostal por muito tempo. Hoje, mesmo me tendo me tornado anglicano, continuo crendo na atualidade dos dons, ainda que não mais sustente a Doutrina Pentecostal.

    No aguardo da continuação.

    Paz e bem!

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  2. A Igreja do primeiro século que é a única que existe possui o batismo com o Espírito Santo e também a doutrina a que chamamos hoje de calvinismo. No livro de Atos está muito claro isto. O caso é que a igreja moderna está passando por um processo de DEGOLAMENTO que está já faz muio tempo desconectando-a de suas origens apostólicas. O fato de ter havido através dos séculos abusos, heresias e semelhantes apresentando-se como verdadeiro batismo do Espírito não justifica uma posição de ceticismo quanto a sua atualidade. O cessacionismo não é doutrina apostólica e deve ser rejeitado, mesmo que tenha sido defendido por pessoas bem intencionadas com o propósito de defender os crentes! Pode haver períodos na história da Igreja em que não há uma manifestação mais ostensiva dos dons, mas também há períodos em que eles se manifestam com mais profusão, como foi o caso do avivamento moráviano.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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