Falar em línguas: natureza e atualidade - Parte 1

Numa conversa entre irmãos, o Ricardo Mamedes apresentou alguns questionamentos interessantes sobre o dom de línguas. Antes de prosseguir, por favor, vá até A Verdade Liberta, o Erro Condena e leia o post na íntegra e especialmente os comentários, assim você terá uma visão geral do que foi dito até aqui e dos desdobramentos que se seguiram.

Sobre o dom de língua, o Ricardo argumentou que o problema corintiano era 1) que o dom de línguas falado na igreja era uma herança do paganismo, das religiões de mistério, trazidas pelos antigos costumes coríntios, 2) que o verdadeiro dom de línguas eram idiomas humanos, idiomas estrangeiros”. Nesta série de artigos pretendo responder algumas perguntas sobre o dom de línguas, mormente se era idiomas humanos e avaliar a hipótese de que as línguas faladas em Corinto eram uma falsificação pagã. O irmão Ricardo assume a posição do Pr. John MacArthur Jr., complementada por pesquisas adicionais, por isso farei referências a esse pastor de quem, à parte de seu anti-pentecostalismo, gosto muito.

Gradativamente, irei analisar o que as passagens de Marcos 16, Atos 2, 1Coríntios 12 e 14 ensinam sobre o dom de línguas, começando com uma análise dos termos utilizados.

Os termos utilizados

As expressões bíblicas utilizadas na ACF para o dom são “novas línguas - glōssais ... kainais” (Mc 16:17), “outras línguas - heterais glōssais” (At 2:4), “variedade de línguas - genē glōssōn” (1Co 12:10,28), “diversas línguas” (1Co 12:30) ou simplesmentes “línguas” (At 10:46; 19:6; 1Co 13:8; 14:5,6,8,18,22,23,26,39). Na expressão “língua desconhecida” (1Co 14:2,4,13,14,19,27), o termo “desconhecida” não consta do original, sendo traduzido como “outras línguas” na ARA, mas devendo ser considerado simplesmente como “línguas”. O mesmo ocorre em (1Co 12:30), onde no original consta apenas “línguas”.

Os termos relacionados a língua e linguagem são obtidos de três termos gregos: γλωσσα (glōssa), διαλεκτω (dialektos) e ἑτερόγλωσσος (heteroglossos). Glossa ocorre 50 vezes no Novo Testamento, sendo que em 17 delas se refere ao órgão da fala, uma vez figurativamente como “línguas de fogo” (At 2:3) e sete vezes em Apocalipse num sentido étnico. As 25 ocorrências restantes referem-se ao fenômeno de falar em línguas. Geralmente o termo ocorre, tanto no singular como no plural, acompanhado do verbo “falar” (de laleō, daí a designação glossolalia), uma vez com o verbo “orar” e uma outra com o verbo “ter”. Dialektos ocorre seis vezes no Novo Testamento (At 1:19; 2:6,8; 21:40; 22:2; 26:14) e sempre se refere à “língua ou a linguagem própria de cada povo” e nunca é utilizado em referência ao fenômeno do falar em línguas. Heteroglossos ocorre apenas em 1Co 14:21 e significa “alguém que fala em uma língua estrangeira ou estranha” e é traduzido pela ACF como “gente de outras línguas”.

John MacArthur Jr. diz que “glossa sempre aparece na sua forma plural em Atos, indicando uma multiplicidade de idiomas”. A partir desse fato, afirma que quando o termo está no singular não se refere ao dom de línguas, mas a algaravia, que “exprime fala inclassificável e sem sentido”. Segundo ele, “quando Paulo usou o singular nos versos 2, 4, 13, 14, 19, estava se referindo a fala algaravia pagã que estava sendo utilizada por muitos crentes coríntios em lugar do verdadeiro dom de línguas”. O que pode ser dito sobre essa tese?

A primeira coisa a ser notada é que a palavra algaravia inexiste no original e até onde eu sei nenhuma tradução fez essa distinção inventada por MacArthur. É uma suposição imposta ao texto, sem nenhum elemento textual que sequer sugira que glossa no plural é dom genuíno e no singular é falsificação pagã.

Em segundo lugar, falta precisão na afirmação que MacArthur faz. Ele cita como única exceção à sua regra 1Co 14:27, que ele admite indicar o dom genuíno, mas como se refere a um único homem falando, então ocorre no singular. O verso diz “se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três”. Portanto, não é apenas um, mas dois ou até três pessoas falando e a justificativa para o singular não se sustenta. Além disso, não é a única exceção. No verso anterior, Paulo diz “quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação” (1Co 14:26), onde, de acordo com o Novo Testamento Grego Analítico, glossa também está no singular!

Em terceiro lugar, uma leitura dos versos em que ocorre glossa no singular mostra que Paulo menciona a prática de forma positiva, ressalvando apenas a falta de íntérprete e não o dom em si. No verso 2 ele diz que quem fala em língua fala a Deus. No verso 4, que a pessoa que fala em língua edifica-se a si mesmo. No 13, orienta ao que fala em língua para que peça o dom de interpretar. No verso 14, falando na primeira pessoa, ele diz que se orar em língua seu espírito ora bem. E no 19 ele diz que prefere dirigir-se à igreja com cinco palavras de sua própria mente do que com dez mil palavras em língua, ou seja, não rejeita, apenas prefere falar de forma entendível por ele mesmo. O recurso de dizer que Paulo estava fazendo uso de ironia nesses versos é uma tentativa de justificar o injustificável.

Em quarto lugar, em obras clássicas o termo glossa ocorre no singular com o significado de linguagem humana, como em Homero, Xenofonte de Atenas, Dionísio Thrax, Filo de Alexandria, etc. (The Theological Dictionary of The New Testament). Na Septuaginta há várias ocorrências de glossa no singular referindo a linguagem compreensível ao invés de algaravia, como em Gn 11:7; Dn 3:29 e Sl 81:5. Mesmo Gn 11:7 a referência é a língua falada pelos povos antes da confusão.

Em quinto lugar, estou ciente que MacArthur é apoiado pelo, ou se apóia no, The Complete Word Study Dictionary. Mas nessa obra não é apresentada nenhuma justificativa textual para essa distinção entre glossa e glossas. E a distinção, se existe, passou despercebida de outros eruditos, que publicaram as obras Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Dicionário Vine, The Theological Dictionary of The New Testament, Louw-Nida entre outros.

O que nós temos até aqui é o seguinte. A maioria a das vezes que glossa ocorre, refere-se ao dom de línguas, tanto que o The Theological Dictionary of The New Testament diz que falar em línguas é um termo técnico para esse fenômeno. Na verdade, à exceção da metáfora de At 2:3 e o sentido étnico de Apocalipse, em nenhuma das vezes o termo é utilizado no Novo Testamento para idiomas humanos, sem que esteja associado ao fenômeno sobrenatural de falar em línguas. Nas outras vezes, quando o Novo Testamento se refere a idiomas humanos, o termo utilizado é dialektos, que por sua vez nunca é utilizado para o dom de línguas.

O termo glossolália, utilizado muitas vezes de forma pejorativa para o dom de línguas, embora não ocorra nessa forma no original, provém do grego, pois resulta da forte associação do verbo falar (laleo) com línguas (glossa), como vimos. Portanto, tentar desmerecer glossolália em favor de glossa é um argumento sem fundamento. E, finalmente, recorrer ao artifício de dizer que em 1Co 14 glossa (singular) é uma falsificação pagã do dom de línguas expresso por glossais (plural) é quase uma medida de desespera de fugir do ensino claro sobre o dom de línguas falado em Corinto.

Continuo, se Deus quiser.
Soli Deo Gloria

14 comentários:

  1. EMMANUEL MARTINS

    Paz do Senhor querido Clóvis!
    Seu artigos são muito edificantes e têm ajudado a cada dia corrobar a minha fé pentecostal.
    Eu já fui atingido pela teologia cessacionista, porém consegui me sair dela estudando e buscando um ponto de equilíbrio escriturístico, e levando em consideração que não tem base sólida nas escrituras.
    Um grande abraço.

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  2. Clóvis, o que é cessacionista?
    Abração.

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  3. Ana,

    Paz seja contigo.

    Cessacionista é uma corrente evangélica que defende que os dons espirituais cessaram, com a morte dos apóstolos ou o fechamento do cânon das Escrituras.

    O oposto é chamado de continuístas ou contemporanistas e defendem que os dons espirituais continuarão até a volta do Senhor.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  4. Irmão,

    O pentecostalismo é uma linha teológica que advoga uma volta as manifestações espirituais de Atos 2, ao Pentecoste. Se isso é uma verdade (se não estou errado), At 2.8-11 é bastante claro em dizer que as grandezas de Deus eram compreendidas por pessoas de diferentes línguas maternas. Havia comunicação.

    Como você entende esse ponto de todo o debate sobre línguas, Clóvis?

    Um abraço.

    Danilo.

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  5. Danilo,

    Paz seja contigo.

    Nas próximas postagens estarei analisando as passagens em que o falar em línguas ocorre, entre elas At 2.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  6. Clóvis, paz!

    Já fazem 15 dias que estou trabalhando em um texto sobre o dom de línguas.

    Parabéns pela introdução acima e espero ansioso pela continuidade.

    Abraços!

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  7. Zwinglio,

    Não preciso lhe dizer de novo, mas digo para os demais, que aprecio seus textos pelo estilo e capacidade argumentativa, sem contar que concordo com a maioria deles.

    E naquilo que divergimos, mantenho nossas diferenças sem comprometer nossa comunhão.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  8. Graça e Paz!

    Sou pastor da Assembleia de Deus e gostaria de deixar um comentário:

    As manifestações de linguas estranhas ou desconhecidas no início dopentecostalismo eram realmente creditadas a linguas humanas de alguma etnia, mas com o passar do tempo foi verificado que a rigem nem sempre era de uma lingua falada em algum lugar.
    creio que as línguas podem ter origens diferentes:

    humanas- aprendidas por simples repetição
    de Deus- como sinal de batismo no Espírito Santo, aqui não é o dom de línguas. ( para oração intima com Deus)
    de Deus- Dom de línguas (em associação ao dom de interpretação
    de demônios- há casos de pessoas possessas que falam em línguas.

    Em Cristo

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  9. A Paz do Senhor Clóvis,

    maravilhoso, edificante e esclarecedor seu argumento. Também estou esperando anciosa a continuidade.

    Em Cristo,
    Sônia.

    Soli Deo Gloria!

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  10. Pr. Claudinei,

    Sim, as línguas são passíveis de falsificação. Daí a necessidade e a disponibilidade do dom de discernir espíritos. O ponto, porém, não se línguas são falsificáveis, mas se o problema tratado por Paulo em 1Co 14 se tratava de línguas falsas ou simplesmente de desordem no culto.

    E quanto a línguas serem entendidas como idiomas humanos, tampouco nego o fato. Pessoalmente nunca presenciei, mas ouvi relatos de pessoas falando em línguas e que foram identificados como sendo idiomas. Um milagre parecido ocorreu em Atos 2 (que irei abordar oportunamente). Mas a questão é se o falar em línguas é apenas e sempre falar em outros idiomas humanos e se isto é prova da genuidade do dom.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  11. CLOVIS,

    Retorno para contribir mais uma vez com aquilo que creio. Para mim,os dons espirituais devem ser avaliados sob a prova do fruto do espírito na vida do crente. Creio que dons são irrevogáveis, por isso há de fato pessoas operando dons, mas a vida espiritual está um caco. Mas de qualquer forma, a Igreja de Corinto é prova suficiente de que espiritualidade não se avalia por dons mas por fruto.

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  12. Pr. Claudiney,

    Concordo o irmão. Mas ressalvo que nem todo dom manifestado por quem está com a vida em caco é um dom genuíno.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  13. Caro Clóvis
    Gostaria de reproduzir este post em meu blog com sua devida autorização e manterei o link conforme original.
    Visite e verifique para autorização
    dcadrianotavares.blogspot.com

    Em Cristo
    Adriano

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  14. Adriano,

    Todos os artigos publicados no Cinco Solas podem ser reproduzidos livremente por quaisquer meios, desde que mantidos em seu conteúdo original, referenciada a autoria e distribuídos sem finalidade comercial.

    Se Deus quiser, em breve publicarei a segunda parte.

    Em Cristo,

    Clóvis

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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