Deus induz o crente à tentação?

“E não nos induzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém.” Mt 6:13 (ACF)

Esta petição do Pai Nosso tem causado algumas dificuldades aos estudantes da Bíblia. O pedido parece indicar que Deus pode induzir alguém à tentação, o que seria negado por Tiago 1:13, que diz que Deus a ninguém tenta.

Como vimos, a Almeida Corrigida Fiel opta por “não nos induzas à tentação”, no que é acompanhada pela Almeida Revista e Corrigida. Isto dá a idéia de que Deus ativamente causa ou introduz o crente na tentação. A maioria da traduções, contudo, adotam uma linguagem que sugere uma permissão e não uma causação divina, dizendo “não nos deixe cair em tentação” (Almeida Revista e Atualizada, Tradução Brasileira e Nova Versão Internacional) ou “não deixes que sejamos tentados” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje) e “não nos deixe entrar em tentação” (Almeida Revisada). Não pretendemos, e seria duma presunção absurda, determinar qual a melhor tradução, mas tentar analisar as implicações da tradução que sugere que Deus leva o crente a ser tentado.

O verbo εισενεγκης é formado pela preposição eis, que significa “para dentro” e phero, que pode ser traduzido como “levar”, então temos “levar para dentro”. Outras ocorrências de eisphero são traduzidas pela ARC como “fazê-lo entrar” (Lc 5:18), “levar” (Lc 5:19), “conduzas” (Lc 11:4), “trazes” (At 17:20), “trouxemos para” (1Tm 6:7) e “trazido... para [dentro]” (Hb 13:11). E considerando que o verbo está na voz ativa, não é nenhum absurdo considerar que Deus introduz ou leva o crente para dentro da tentação.

Neste caso, precisamos examinar a palavra tentação, para verificar se conflita com a declaração de Tiago. O substantivo πειρασμον, traduzido como tentação pode significar “uma prova ou um teste”, como a tentação enfrentada pelos Gálatas por causa da condição física do apóstolo, que serviu para testar o amor deles por Paulo (Gl 4:14). Alguns exemplos de ocorrência de peirasmos com o sentido de “provação” (Lc 8:13; At 20:19; Tg 1:12; 1Pe 1:6; 1Pe 4:12; Ap 3:10). É nesse sentido que tentação deve ser tomado aqui, bem como em Lucas 22:28.

Embora seja certo que “Deus não pode ser tentado pelo mal e ele a ninguém tenta” (Tg 1:13), devemos entender que o Senhor a ninguém tenta pelo mal, no sentido de induzir alguém a pecar. Porém, devemos considerar que Deus pode submeter o crente à prova, no processo de transformação na imagem de Seu filho. O próprio Tiago diz “meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações” e “bem-aventurado o homem que suporta a provação; porque, depois de aprovado, receberá a coroa da vida, que o Senhor prometeu aos que o amam” (Tg 1:12). Paulo também anima os crentes dizendo “não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (1Co 10:13).

Em resumo, e de acordo com Paulo, podemos afirmar que Deus pode, de acordo com Sua santa vontade e para o nosso bem, nos levar à provação, conforme as traduções mais tradicionais o indicam. Porém, podemos estar seguros que Deus nem permitirá que o crente venha a cair quando tentado, nem deixará que seja tentado além de suas forças. Comentando esta petição, João Calvino disse:
Não pedimos aqui não ter que sofrer nenhuma tentação. Temos grandíssima necessidade de que as tentações nos despertem, estimulem e sacudam, pois corremos o perigo de converter-nos em seres amorfos e preguiçosos se permanecermos numa calma excessiva. Cada dia o Senhor prova seus escolhidos, adestrando-os por meio da ignomínia, da pobreza, da tribulação e outras classes de cruzes. Porém nossa demanda consiste em pedir que o Senhor nos dê também, ao mesmo tempo que as tentações, o meio de sair delas, para não sermos vencidos e esmagados; antes, fortalecidos com a força de Deus, poder manter-nos constantemente contra todos os poderes que nos assaltam (Breve Instrução Cristã).

3 comentários:

  1. Paz Clóvis,

    Só para apimentar a discussão, um dos escritos do Cheung -> Não nos deixes cair em tentação

    Agora minhas considerações a respeito, acho interessante como nós gostamos de definir termos similares, você citou a palavra grega peirasmos - tentação/provação, você já parou para pensar que o grego não faz diferença? Haja vista que, quer seja uma tentação ou uma provação Deus faz uso de agentes, ou seja, Ele nunca tenta/prova alguém pessoalmente.

    Quando Tiago ensina que Deus não pode ser tentado pelo mal, está simplemente afirmando uma verdade inconteste, Não existe nada superior a Deus, mesmo o mal está SOB seu controle soberano, o mal não controla Deus, Deus é quem controla o mal. E quando diz que Ele a ninguém tenta/prova porque sempre faz uso de agentes para isso.

    Que o Eterno lhe abençoe,

    Ednaldo.

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  2. Ednaldo,

    Não ignorei seu comentário. Mas ainda não li o que Cheung escreveu, por isso vou guardar minhas palavras um pouco mais.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  3. Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. (Mateus 4:1)
    Não veio sobre vós tentação senão humana.C/c(Tg.1:14) Mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis resistir, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar. 1º Cor.10:13 - Isso explica tudo.

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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